As bundas de Drummond

Maria de Lourdes Colombo
Quarto de Sonho. Instalação. Detalhe
Este artigo poderia chamar-se Preferência nacional, Calipigiomania, Abundam
bundas. Optei pelo título acima sabendo que as "viúvas" do poeta vão chiar, vão me execrar. Não sei o que Drummond acharia. Mas sei que Niemeyer me aplaudiria.
Um dia disse-me que as curvas de sua arquitetura originavam-se na sensualidade dos bumbuns nacionais. Daí a certeza.
Anos atrás, a artista plástica Maria de Lourdes Colombo apresentou na Capela do Morumbi, em São Paulo, instalação que denominou Quarto de Sonhar.
No convite, foto colorida mostrava penteadeira repleta de objetos e produtos de beleza feminina. Nas gavetas entreabertas, calcinhas rendadas vermelhas, pretas, colares de pérolas ofereciam-se aos olhos do espectador.
Arrematando o clima erótico e sensual da cena, um poema de Carlos Drummond de Andrade. Sem nome, sem data. É o que está em baixo:
Amor – pois que é palavra essencial comece
esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma a expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, Platão viu contemplado:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar esta gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais.
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor, morre de amor divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas.
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre
Carlos Drummond de Andrade
Não costumo guardar convites. Guardei. Convite com poema de Drummond falando de “vulva e membro”, do “toque delicioso do clitóris” do “úmido subterrâneo da vagina”, a penteadeira com os batons vermelhos, lingerie rendada delicada, a intimidade semi-exposta, impediram-me de jogá-lo.
Sabia que um dia voltaria a vê-lo. Esse dia chegou semana passada. Ao lerFarewell encontrei na bibliografia a menção a O Amor Natural. Comprei o livro para procurar o poema do convite. Estava lá. Na primeira página: Amor – Pois que é palavra essencial. Sem data. O amor natural foi publicado em 1992.
Nos outros trinta e nove poemas encontrei o erotismo, a sensualidade, a sexualidade de Drummond à flor da pele.
Reuni alguns em que o poeta louva o bumbum das mulheres que "amou" e das outras. Às vésperas do carnaval em que bundas agitam-se e balançam-se como bambus ao vento, prioridade na televisão, os poemas vêm a calhar.

Ilustração: Milton Dacosta
A BUNDA, QUE ENGRAÇADA
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente .
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.

Ilustração: Milton Dacosta
NO CORPO FEMININO, ESSE RETIRO
No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda – é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.
Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro
a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.
NO MÁRMORE DE TUA BUNDA
No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
ERA BOM ALISAR SEU TRASEIRO MARMÓREO
Era bom alisar seu traseiro marmóreo
e nele soletrar meu destino completo:
paixão, volúpia, dor, vida e morte beijando-se
em alvos esponsais numa curva infinita.
Era amargo sentir em seu frio traseiro
a cor de outro final, a esférica renúncia
a toda aspiração de amá-la de outra forma.
Só a bunda existia, o resto era miragem.

Ilustração: Milton Dacosta
BUNDAMEL BUNDALIS
BUNDACOR BUNDAMOR
Bundamel bundalis bundacor bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
bunda em flor, bunda em al
bunda lunar e sol
bundarrabil
Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
opalescente bun
incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.
Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
Bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.
Carlos Drummond de Andrade

Ilustração: Milton Dacosta
Carlos von Schmidt - 27/fevereiro/2003 - 2horas
Editora Record. 139 páginas.