As garrafas de Paula

Em crônica que escrevi sobre John Updike para Secos & Molhados, minha nova coluna nesta inefável revista virtual, disse que, além de escrever romances, contos e poemas, ele escrevia sobre literatura e artes pláticas para a New Yorker. Revista norte-americana de nível alto.
Citei uma frase de Updike “entrevistadores e críticos são inimigos do mistério, a indeterminação que dá vida à arte.” Está em Seek my face, publicado no Brasil pela Companhia das Letras como Buscar meu rosto.
Na noite do vernissage da exposição Excessos Sensoriais de Paula Salusse, na galeria Slaviero & Guedes, ao ver o que a artista conseguiu com suas garrafas de vinho, o mistério, a indeterminação de que Updike falou, ficou visível. Estava ali.
Em cada trabalho. No enfoque. Na abordagem. Na multiplicidade da técnica. Na pintura tradicional à digigrafia hodierna. De última geração. Paula Salusse se revela eximia em todas.
Quando Paula disse: ”de uma garrafa faço uma garrafa” quis dizer que uma garrafa é uma garrafa assim como Gertrude Stein disse que uma rosa é uma rosa ...
E, foi mais longe, pegou a garrafa, bebeu o vinho, tirou o rótulo, a etiqueta. Depois de reduzir a garrafa à sua essência, à sua condição de garrafa, de receptáculo de vidro, transparente ou não, encheu-a com sua imaginação.
Ou a destruiu para refazê-la. Alquimia pura. Ao manipulá-la o mistério de que falou Updike, dominou. A indeterminação predominou. A garrafa e a rosa. A rosa e a garrafa. A garrafa e a dose. A dose e a garrafa.
Não estou citando Stein por erudição. Em algumas garrafas há uma rosa, como em outras há doses coloridas que variam de cor e volume.
Alinhadas nas garrafas são como notas musicais. O quanto de cada dose, a cor, estabelece uma escala. É aí que está o mistério. Que Paracelso no vídeo sobre as doses simplifica em uma frase: “Só a dose faz o veneno”. Sutil.
Ao vê-las nas garrafas sobre a superfície branca associei-as as dos copos de licor de absinto, do Veston Aphrodisiaque, Paletó Afrodisíaco de Dalí. Garrafas, doses, copos.
Em pé, com o gargalo para cima ou para baixo, ou deitada com a base para frente ou pra trás, as garrafas de Paula se multiplicam em grupos contínuos em que as imagens se alteram.
Essa alternância evita que a repetição se torne monótona. A leitura cansativa. Poderosas essas garrafas. Como diz Paula essas “dez, cem, mil” garrafas compõem as ”paisagens de fogo e areia, carpetes de vidro, treliças e cortinas cintilantes” de sua obra.
Graças à essas garrafas dei asas à imaginação. Fui da bota de vinho de Picasso no Bateau Lavoir à taça de champagne de Lautrec no Bal Tabarin. Às garrafas de champagne, vinhos tintos e licores do bar do Folies–Bergère de Manet.
Voltei à realidade da mostra quando o garçon me deu a flûte com Proseco e senti o gosto do vinho em minha boca. Há muito tempo não via exposição tão réussie, tão bem sucedida como Excessos Sensoriais. Vê-la foi um prazer. Raro.
Carlos von Schmidt
Curador e Crítico de Arte
São Paulo 4 de fevereiro de 2009 17:36
Acesse as Panorâmicas de Paula Salusse em www.panoramicas.com.br/wp-content/uploads/2009/02/paula-salusse-expo-slaviero10.swf
