Canibalismo oportuno

Em Tarsila matriz e filial, em Curtas & Rápidas, escrevi sobre o que alguns pensavam há trinta anos sobre releituras, apropriações e canibalismo. Hoje, as coisa mudaram, mas ainda existe quem não admita a apropriação. A antropofagia. Bobagem!!!
A exposição Diálogos com Tarsila que o Espaço Cultural Blue Life está apresentando, coloca a releitura, a apropriação, antropofagia, o canibalismo, a dessacralização do original em discussão. Este o maior mérito da mostra.
Enquanto a maioria dos nossos museus burocratiza cada vez mais suas programações e sua exposições primam pela falta de inteligência, de vida, de vibração e energia, Diálogos com Tarsila propõe novos caminhos, sacudindo a poeira e dando a volta por cima.
O que pretendo dizer com isso? Quero dizer que exposição sem conceito, sem uma idéia básica, sem questionamento, não existe. Não passa de um monte de obras reunidas e expostas. Só!!! Não significa nada.
Por que Diálogos com Tarsila é diferente? Porque instiga, provoca, excita. Por que antes de mais nada tem uma proposta estética.
A partir do momento em que a obra de Tarsila passou a ser “objeto de reflexão”, de releitura, de apropriação, de canibalismo, a exposição como um todo se delineou. Ganhou corpo.
Treze artistas do grupo Contempoarte deram a esse corpo, com maior ou menor brilho, força, tudo que conseguiram apropriar de Tarsila.
Embora a princípio apropriar pareça fácil, brincadeira de criança, na verdade não é. É difícil.
Escrevi em Tarsila, matriz e filial, que se a obra apropriada não remete diretamente ao original a apropriação não passa de um tremendo equívoco. De algo que parece, mas não é.
A meu ver dos treze artistas que abordaram a obra de Tarsila, cinco compreenderam o que é ser antropófago, canibal.
Captaram a essência das pinturas que lhes serviram de ponto de partida e mantiveram com elas diálogo direto: Araci Ishida, Helena Falconi, Nina Arbex, Walter Gini e Yeda Sandoval.

Urutu, de 1928, inspirou Araci Ishida. Sempre achei essa pintura de Tarsila, estranha e perturbadora. Em 1969/70 quando entrevistei e filmei Tarsila para meu programa Arte no Brasil, da TV Cultura, falamos sobre as terríveis urutus que apavoravam e ainda apavoram a todos nas fazendas.
Os sonhos que tinha com a urutu eram pesadelos horríveis. Centenas de pequenas urutus saiam de ovos invadindo tudo. Pintar Urutu foi uma espécie de exorcismo.
Onírica e surreal essa pintura encontrou em Ishida, releitura que destaca o deslizar das urutus mortais. Captar a essência do original foi fundamental. Ishida captou. Urutu 2 comprova.
Em Sono, também de 1928, Helena Fallconi encontrou na repetição formal de um signo que se perde no infinito, a tridimensionalidade da imagem que se repete. Inicialmente concebida para ser exposta como móbile,Sono 2 apresenta formas recortadas em placas de borracha e alumínio. Dispostas no chão não têm a leveza e a possível mobilidade imaginada.
Mesmo assim, o dialogo que mantém com a original, é de alto nível. Como diriam os críticos franceses, do Le Monde e do Le Figaro, Sono 2 é uma obra “bien réussi”, “ bem sucedida”, “bem realizada”. Concordo plenamente.
Ao contrário de Sono 2, Paisagens revisitadas, de Nina Arbex, suspensa no espaço, tem toda leveza e transparência de uma asa de borboleta. Usando a técnica do batik e da aquarela e a seda como suporte, Arbex deu asas à imaginação. Encontrou nas imagens hiper-coloridas de E.F.C.B., Estrada de Ferro Central do Brasil, de 1924, A Feira, também de 24 e Palmeiras, de 1925, um universo tarsiliano à espera de alguém que se atrevesse canibalizá-lo. Arbex o fez com competência. Precisão.
Porém ao fazê-lo a sutileza e a delicadeza do processo, deu às cores compactas originais, novas características: a transparência, o brilho, a leveza, a mobilidade. Acredito que Paisagens revisitadas teria encantado Tarsila. Faz jus às suas cores únicas.
Ignorando por completo essas cores, Yeda Sandoval atirou-se com voraz apetite ao antológico Abaporu, de 1928. Transformou a pintura que perdemos para Argentina e que hoje se encontra no Museu de Arte Latino-America de Buenos Aires, Malba, em relevo monocromático cinza. Essa opção que poderia dar totalmente errada, deu certo.

Finalmente a cadeira de Walter Gini. Se a exposição Diálogos com Tarsila se resumisse a esse trabalho, faria jus ao título, à idéia básica.
Gini ao escolher A Negra, de 1923 acertou em cheio.
A Negra é na obra de Tarsila referência às negras escravas que cuidaram dela quando nasceu, em Capivari, SP, em 1886. Dois anos antes da proclamação da Lei Áurea. E às escravas recém libertas que continuaram a cuidar. A lhe contar histórias que Tarsila transformou em pinturas como Urutu, Cuca e outras.
Tarsila era filha, neta, sobrinha de fazendeiros. Tinham 25 fazendas. A cadeira de Gini com seus braços acolhedores tem tudo a ver com os braços negros que a protegeram e embalaram.
O título Encosta no peito da Negra não poderia ser mais feliz. Certo. Exemplo acabado de apropriação, de canibalismo, a cadeira de Gini, na sua simplicidade franciscana é digna de museu. Sem exagero, antológica!
Diálogos com Tarsila tem curadoria da arquiteta Lílian Heitor, coordenação do artista Waldo Bravo e texto do antropólogo Antonio Carlos Fortis.
Permanece em exposição no Espaço Cultural Blue Life até 29 de julho.
São Paulo 10 de julho 2H00 Carlos von Schmidt