Capote em leilão

O título deste texto é ambíguo. Não se trata de um capote, “casaco com mangas compridas, de tecido grosso, longo e amplo, para tempo de frio” como define o Larousse, nem de um “casacão, peça de vestuário, de mangas compridas, que cobre o tronco agasalhando-o contra o frio, feita de tricô, tecido, etc., e se assemelha ao casaco”, segundo o Aurélio, em leilão. Os manuais de redação desaconselham a citação de dicionários. Estou careca, cansado de saber. Não resisti!!!
Trata-se de Truman Capote. Dos bens do escritor, morto às 12 horas e 21 minutos de 25 de agosto de 1984, 35 dias antes de completar 60 anos. Nasceu às 15 horas de 30 de setembro de 1924, na Touro Infirmary de New Orleans. Não em um hotel como se costuma escrever.
A mãe, Lillie Mae Faulk, tinha dezesseis anos. Beauty Queen. Rainha da Beleza. Eleita em Monroeville, onde nasceu e viveu. Miss Alabama.
O pai, Archulus Persons, 25 anos, conhecido como Arch, mulherengo militante, colecionava amantes. Era um sexaholic, viciado em sexo. Lillie por sua vez também adorava to make love, fazer amor, transar. Arch conquistou-a sem muita dificuldade. Casaram-se de um dia para outro.
Ao saber que estava grávida, Lillie quis abortar. Arch não deixou. Foi graças a ele que um menino veio à luz. Arch deu ao recém nascido o nome de Truman Streckfus Persons.
Porque Truman? Por que era o nome de um amigo do colégio militar. Não tem nada a ver com o Harry Truman, futuro presidente dos Estados Unidos. Streckfus? Acredite se quiser, em homenagem à empresa em que trabalhava. Persons? Era seu sobrenome. De família.
Arch trabalhava em uma empresa marítima. A Streckfus Excursion Boat. Viajava em “gaiolas”, navios movidos a vapor, com roda na popa. Típicos do Mississippi. Cuidava das finanças do navio. Dos gastos dos passageiros. Em especial das passageiras. Não demorou muito para que os recém-casados descobrissem que entre eles havia muito pouco em comum. Ambos pulavam a cerca sempre que a oportunidade aparecia. Lillie não resistia a uma boa cantada. A vida em hotel facilitava e propiciava as escapadas. Arch vivia à caça. Não podia ver um rabo de saia.
Truman tinha quatro anos quando o casal separou-se. Foi enviado para Monroeville e criado por tias e primas da família da mãe. Um ano depois de chegar, apreendeu a ler e a escrever, sozinho.
A meninice em Monroeville foi para Truman, decisiva. A lembrança desse tempo faz parte de seus primeiros textos. É o coração da matéria. O ponto de partida. Às lembranças de Monroeville sobrepõem-se outras. As de homens desconhecidos bolinando e beijando Lillie nos quartos de hotel.
Intoxicação múltipla por drogas
No dia em que Capote morreu nos braços da amiga Joanne Carson, na casa de Bel Air, em Los Angeles, falou-se muito em overdose. Ele era alcoólatra e drogado. Viciado em barbitúricos e tranqüilizantes. Usava e abusava de seuCapote’s Cocktail, Coquetel Capote, uma mistura de álcool e anfetaminas.
Para o legista a morte foi causada por “doenças do fígado complicadas por flebite e intoxicação múltipla por drogas”. É o que consta do atestado de óbito. Indiretamente intoxicação múltipla por drogas confirma os rumores da overdose.

Joanne fotografou Capote dois dias antes da morte. Ele estava sentado em uma cadeira de vime perto da piscina. Cinamom, o dobermann de Joanne estava a seu lado. A foto não mostra um Capote doente, debilitado, depressivo, derreado. Estava bem. A hipótese de suicídio é valida. A de que teria errado na dosagem das bolinhas, pouco provável. Ficará a dúvida. O que se sabe é que essas bolinhas o mataram.
Depois do funeral, Joanne fechou a porta do quarto de Capote e deixou tudo como estava antes da morte. Suas coisas ficaram vinte e dois anos intocadas, fechadas, até agora na casa da ex-mulher do apresentador de TV Johnny Carson. Divorciaram-se em 1972.
Capote vivia seis meses em New York em seu apartamento da Praça das Nações Unidas e os outros seis em Los Angeles, com Joanne. Ocupava dois dos cinco quartos. A ex de Carson era amiga íntima de Capote. Aqui, a palavra amiga não é eufemismo, não tem duplo sentido. Não tinham um caso. Não eram amantes. Entre Capote e Joanne não havia sexo. Amizade, sim.
Ela o tratava com muito carinho, afeto, atenção e intimidade, como a maioria das mulheres trata os amigos gays. Entendiam-se às mil maravilhas. Ele a considerava sua confidente e retribuía toda atenção.

Sabia o que era viver só, sem ter ninguém com quem se abrir, confiar. Gay desde menino, Truman apreendeu cedo que não era igual aos outros garotos. Seu “melhor amigo” era uma vizinha, Nelle Harper Lee. Era dois anos mais velho do que ela, mas ela era mais alta, mais forte. Truman apanhava de Nelle sempre que aprontava. Vivia apanhando.
O Pulitzer de Nelle
Nelle escreveu um romance, To Kill a Mockingbird. Foi publicado em 1960 porLippincot. Recebeu o Prêmio Pulitzser um ano depois. Um dos personagens do livro, Dill Harris, foi inspirado em Truman menino.
Antes da publicação Nelle pediu a Truman que desse uma olhada no original. Truman deu. Corrigiu, sugeriu. Vem daí o boato de que o livro foi escrito por ele. Não foi.
Fala-se também que a fofoca foi coisa de Truman, enciumado com o prêmio. Quando o Pulitzer saiu, Capote e Harper estavam enfiados até o pescoço na pesquisa e documentação de À Sangue Frio. Nelle acompanhou-o a Holcomb, Kansas, em 1959 quando foi investigar o massacre da família Clutter. Foi ela que aproximou Capote dos habitantes da cidade e que cuidou das pesquisas e das entrevistas de In Cold Blood.
Capote dedicou o livro para seu companheiro, o escritor Jack Dunphy, e para Harper Lee. Na dedicatória fala de amor e gratidão.
Furor Puritano
Em Other Voices, Other Rooms, publicado em 1948 quando Capote estava com 23 anos, Joel Knox, o personagem central da ação, um menino de treze anos, alter ego do autor, revela como descobriu a homossexualidade.
Esse livro trouxe na sobre capa, na quarta capa, uma foto de Capote tirada no ano anterior por Harold Halma. Mais do que a história do jovem que descobre a sexualidade, a foto publicada abaixo, causou o maior escândalo, furor. Para muitos, a pose de Capote, à la Claudette Colbert seduzindo Marco Antonio emCleópatra, filme de DeMille, de 1934, semi-reclinado languidamente em um sofá, encarando a câmera com expressão considerada lasciva, lúbrica, erótica, debochada, safada e agressiva, era um insulto.
Seu olhar melífluo, a mão apoiada sobre o sexo, mexeu com o machismo texano de muitos. Capote virou alvo dos puritanos de plantão. Foi um “pega para capar”.

Cinco anos após a publicação de Other Voices, Other Rooms, em maio de 1953, em minha primeira viagem aos Estados Unidos, comprei o livro no aeroporto La Guardia de New York. Com o livro na mão pude ver que a foto de Halma não era nada daquilo que falavam e escreviam. Tinha certo clima como a Mona Lisa tem, mas não passava disso.
Só mesmo o puritanismo exagerado e o espírito kukluxklanesco e waspsiano, dos brancos anglo-saxões protestantes, justificavam tanto barulho e celeuma.
A sacanagem estava na cabeça de quem via, não na foto. É claro que a pose de Capote não prima pela inocência, mas também não é um atentado ao pudor.
Muito menos como escreveu o Los Angeles Times, como se ele “estivesse sonhadoramente contemplando algum ultraje contra a moralidade convencional”. Exagero! Bullshit!!! Bobagem!!!
Por incrível que possa parecer, Capote foi malhado pela foto. Não pela história do menino que descobre o sexo e a homossexualidade. Seria natural que o fizessem. Não fizeram. Pervertido, tarado, bicha safada, viadinho, faziam parte do extenso repertório de adjetivos depreciativos e ofensivos que lhe atribuíram.
Warhol tiéte de Capote
Enquanto moralistas hipócritas desancavam Capote, um outro jovem, que ainda não sabia que era homossexual, Andy Warhol, então com 20 anos, vivendo em Pittsburgh, se encantou com a foto. Para Andy, Capote virou obsessão.
Tudo em Capote o atraia. O fato de ser sulista como outro gay, Tennessee Williams, autor de The Glass Menagerie, de 1945, ter nascido em New Orleans, a terra do jazz, o jeito de falar do sul, o sotaque sulino, a voz nasalada, aguda e chiada, faziam de Capote, personagem fascinante. Entusiasmado, escreveu uma carta. Não teve resposta. Não desanimou.
Em 1949 Warhol deixou Pittsburgh. Foi morar e trabalhar em Manhattan, New York. Fez vitrinas, publicidade e ilustrações. Obcecado por Capote não sossegou enquanto não encontrou o endereço dele.
Capote morava com a mãe e o padrasto, Joseph Garcia Capote, em New Yorkdesde 1933. Garcia Capote era cubano. Homem de negócios, industrial têxtil. Bem sucedido. Gostava de Truman. Tratava-o bem. Matriculou-o nas melhores escolas.
Após localizar o endereço de capote na Park Avenue,1060, Andy começou a assediá-lo através de cartas, telefonemas. Todos os dias escrevia bilhetes curtos: “Tenha um bom dia” ou ”Um dia maravilhoso para você” e outros do mesmo gênero. Pequenos desenhos às vezes acompanhavam os bilhetes. Aproximar-se de Capote, idolatrado às ultimas conseqüências, passou a ser vital para Warhol. Os bilhetes não respondidos, a total indiferença do jovem ídolo, levaram Warhol à loucura. Telefonava de manhã, de tarde, de noite.
Às vezes ficava o dia todo, do outro lado da rua, em frente ao prédio em que Capote morava. Esperava-o chegar, entrar e ia embora. Outras, o seguia pelas ruas à distância.
Capote ignorava-o e não lhe dava a mínima atenção. Isso não o desistimulava. Onde quer que Capote fosse, com a persistência de groupie, tiéte, macaca de auditório, Warhol ia atrás.

Chamar sua atenção, se fazer notar era para ele razão de ser, de viver. Sobre a insistente perseguição, Capote, anos mais tarde, comentou: ”Ele queria ser meu amigo, falar comigo, conversar comigo. Ele quase me enlouqueceu”.
Existe uma história não comprovada que conta que uma vez, em uma rua próxima ao prédio em que Capote morava com a mãe, Warhol se aproximou dela e se apresentou. Ela na maior inocência convidou-o para um drink. Subiram para o apartamento.
Há outra que diz que dona Nina - era assim que Joe Capote chamava a mulher – marcou, por telefone, um encontro com ele em um bar e que depois de algunsdrinks, subiram para o apartamento.
E uma terceira. Dona Nina ao vê-lo de plantão junto a um poste, condoída, teria descido, convidando-o para subir.
Quando Capote chegou, levou o maior susto ao vê-lo sentado ao lado de sua mãe. Ela, de pilequinho, apresentou-o ao filho. Essa versão do encontro entre os dois nunca foi confirmada por Capote. Para alguns biógrafos, nunca aconteceu. Foi criação dos ghosts-writers de Warhol, o escritor e editor adjunto da revista Interview, Bob Colacello e de Pat Hackett, secretária de Warhol de 1968 a 1976.
Meninas sapecas
Autores respectivos de The Philosophy of Andy Warhol From A to B and Back Again, Andy Warhol Diaries e Andy Warhol Exposures.
Este último foi escrito a seis mãos. Além de Colacello, de Hackett, colaborou também Brigid Berlin.
Íntima de Warhol, freqüentadora assídua da The Factory, a Fábrica, ateliê do artista, funcionária da Interview, superstar de seus filmes underground. Filha de Richard Berlin, presidente da Hearst Corporation, império da mídia. O pai de Brigid era poderosíssimo. Às vezes atendia ao telefone e era alguém da Casa Branca dizendo que o presidente Nixon queria falar com Mr. Berlin. Ou o duque de Windsor. Era amiga de Patrícia Hearst, a herdeira da Corporation, a que seqüestraram. Aquela que foi com os seqüestradores assaltar bancos.

Gorda, muito gorda, pesava mais de cem quilos. Na Factory a chamavam de 120 quilos de pecado. Warhol gostava de filmá-la, de fotografá-la nua. Brigid não se fazia de rogada. Rapidinho tirava a roupa. Destacava nas fotos polaróides e nos filmes os grandes seios caídos, a barriga, a bunda, enormes. Brigid posava à vontade como se fosse uma sílfide das passarelas.
Ambos, todas as manhãs, ficavam horas ao telefone jogando conversa fora. Brigid era confidente de Andy. Warhol abria-se com ela. Hipocondríaco em potencial, sempre falava de uma dor aqui outra ali. Uma vez disse-lhe que estava com dor nos bagos. Brigid respondeu-lhe; “sinto muito, mas de bagos não entendo nada”.
Warhol não escrevia
Dos três livros autobiográficos, Warhol não escreveu uma linha. Pat lia os capítulos para ele, Warhol aprovava, pedia para modificar alguma coisa quando não concordava e só. A história do encontro teria sido pura invencionice de Colacello, chapado depois de alguns baseados. Só escrevia maconhado.
Depois desse encontro que dizem não ter acontecido, Warhol continuou a telefonar diariamente. A mãe de Capote, que sempre estava além do terceiro uísque, atendia numa boa. Conversavam sobre Truman, Warhol falava da mãe dele e dos 25 gatos dela. O nome dos gatos era um só, Sam. A conversa ia longe.
Warhol encontrou em dona Nina a interlocutora ideal. Como fã incondicional do filho, elogiava-o sem revelar a paixão arrasadora que o consumia aliada ao desejo de ser famoso, célebre, conhecido, como Capote. Até que uma noite, cansada de tanto nhê, nhê, nhê, dona Nina, que àquela altura já estava para lá de Bagdá, soltou os cachorros. Disse a Warhol que parasse de ligar e de encher o saco. Warhol parou.
Capote referindo-se ao fato, falou: “Como todos os alcoólatras, ela tinha seu lado Jekyll-and-Hyde. Embora fosse uma pessoa basicamente simpática e de achá-lo muito meigo, baixou o cacete”. Capote em outra ocasião, falando sobre Warhol, comentou: “ele era a pessoa mais solitária, mais desamparada, que encontrei em toda minha vida”.
Quinze desenhos de Warhol
Para chamar a atenção de Capote, Warhol, em 1952, fez uma exposição de desenhos na Hugo Gallery, na Rua 55. Foi a primeira individual. De 16 de junho a 3 de julho. A mostra se chamava: Fifteen Drawings Based on Writings of Truman Capote, Quinze Desenhos Baseados nos Escritos de Truman Capote.
Convidou-o para o vernissage. Insistiu para que fosse. Capote não apareceu na noite da abertura. Foi depois com dona Nina. Em uma hora em que Warhol não estava. Não comprou nenhum desenho. Poderia comprar para ilustrar um de seus textos ou recomendá-lo aos editores das revistas que os publicavam. Era o queWarhol e Alexandre Iolas, o dono da galeria, um ex-bailarino, esperavam. Não fez nenhuma coisa nem outra.
Por ser a primeira individual de Warhol, a exposição é mencionada em todas as biografias, mas até hoje só encontrei uma crítica sobre a mostra. Foi publicada na Art Digest e assinada por James Fitzsimmons. Para ele os desenhos lembravam os de Bearsdley, Balthus, Jean Cocteau, Charles Delmuth e Toulouse Lautrec. O que pretendeu dizer ao citar artistas tão desiguais é difícil concluir. É provável que se referisse ao conteúdo, não à forma, pois entre o inglês Bearsdley e o francês Lautrec e entre os outros mencionados, não há nada em comum.
“O trabalho tem um ar de preciosidade, de estudada malícia. Rapazes, molecas e borboletas são desenhados com traço fino em magenta ou violeta espalhados aqui e ali ao que parece de modo arbitrário.”
Não sei o que Warhol disse a respeito dessa primeira crítica. Porém, saber que seus desenhos lembravam os dos famosos artistas mencionados por Fitzsimmons, se é que sabia quem eles eram, deve ter no mínimo massageado seu ego.
Depois dessa exposição as vidas de Capote e Warhol seguiram rumos opostos, mas os colocaram sob as luzes brilhantes dos refletores.

Warhol com Coca-Cola, Sopa Campbell, Brilo e Marilyn Monroe em 62 e Capote com In Cold Blood, À Sangue Frio, em 1965, passaram a ser marcos, referências, como pessoas e como profissionais que influenciaram e modificaram o status quo da literatura e das artes plásticas e visuais americanas. Por extensão, do mundo.

Famosos, célebres e ricos, enquanto Warhol se dava ao luxo de fazer cinema underground, bancar e editar a revista Interview, Capote borboleteava de coquetel em coquetel, de festa em festa, de jantar a jantar, exibindo-se, voando e batendo as asas, vivendo um personagem, verdadeira caricatura de si mesmo.
O veneno da cobra
Continuava ferino, sarcástico, mordaz, sempre pronto a alfinetar alguém, mas fazer o que sabia fazer, escrever, não escrevia. Falar, falava, muito. Nos coquetéis, no jantares, nas entrevistas. Cada vez que abria a boca para falar de alguém ou responder a uma pergunta, destilava veneno por todos os lados. Se mordesse a língua morreria envenenado.
Sobre o vocalista dos Rolling Stones disse: “Mick Jagger se movimenta como uma paródia entre uma majorette girl e Fred Astair”. As majorettes são aquelas moças peitudas, pernas à mostra, que fazem evoluções nos jogos de baseball. Evoluem em frente das fanfarras escolares fazendo malabarismos ao som de marchas de John Philip Sousa.
Capote não perdoava, não poupava ninguém. Não tinha papas na língua. Compensava a baixa estatura com a língua afiada. Quando lhe perguntaram o que achava do livro On the Road de Jack Kerouac, respondeu sem hesitar: “That’s not writing, that’s is typing”, ”Aquilo não é escrever, aquilo é bater à maquina”.

Às vezes não era tão sutil, fino, delicado. Engrossava como na entrevista com Norman Mailer e Gore Vidal na televisão. Deixou-os falar sobre literatura, livros, estilo. Arrematou dizendo: “Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra prima, vocês não!!!”. Referia-se a In Cold Blood. Mais não falou. Nem lhe perguntaram.
Sobre o papa da pop arte comentou assim como quem não quer nada: “Warhol é uma esfinge sem enigma”. Irônico. Cáustico. Arrasador. Fazia jus ao apelido tiny terror, terrorsinho.
Indisciplinado e dispersivo
Dos dois, Warhol foi o mais sábio. Não se deixou deslumbrar nem se deixou seduzir pelos ricos e famosos. Nem embarcou em uma viagem sem volta no álcool e nas drogas. Capote não resistiu. Mergulhou de cabeça. Não teve forças para emergir. Afundou cada vez mais. Escrevia cada vez menos.
Pode-se dizer que In Cold Blood foi seu canto do cisne. Prematuro. De Capote esperava-se muito mais.
A expectativa do anunciado Answered Prayers, Súplicas Atendidas, iniciado por Capote em 1966 e nunca terminado, era muito grande. Isso por que ele considerava Súplicas Atendidas, o grande romance americano não ficcional, tão importante quanto A La Recherche du Temps Perdu, Em Busca do Tempo Perdido de Proust. Escreveu alguns capítulos. Não foi mais além. Não passou disso. Tinha por Flaubert a maior admiração, amava Madame Bovary, mas não tinha a disciplina do francês. Escrever exige.
O título instigante, brilhante, Súplicas Atendidas, Capote foi buscar em uma frase de Santa Tereza D’Ávila, “As súplicas respondidas causam mais lágrimas do que as que não o são”.
Não poderia imaginar que as suas Súplicas Atendidas o fariam chorar lágrimas amargas, de sangue. Chorou.

Arrasado, melancólico e triste podia repetir Rimbaud em Une Saison en Enferdizendo, “Jadis, si je me souviens bien, ma vie etait un festin ou s’ouvraient tous les coeurs, ou tous les vins coulaient.”. Outrora, lembro-me bem, minha vida era um festim onde todos os corações se abriam, onde todos os vinhos jorravam”.
Festins não havia mais. Não o convidavam. Nem corações abertos. As pessoas o evitavam. Não havia mais com quem compartilhar o vinho.
Indiscrição e fofoca
O escândalo provocado pela publicação de quatro capítulos de Súplicas na revista Esquire, Mojave e La Côte Basque-1965, em 1975 e Unspoiled Monsters e Kate McCloud, em 1976, foi crucial na vida de Capote.
Nesses capítulos, Capote expôs a vida íntima dos amigos do jet set invadindo-lhes a alcova, os boudoirs, a privacidade, falando de suas aventuras conjugais.
Revelou quem transava com quem, quem traia quem, quem era e quem não era bom de cama. Preferências sexuais, fixações, fantasias, taras, manias, identificando-os ou não, mas sempre deixando indícios que permitiam reconhecê-los.
O produtor de televisão e seu protetor, Bill Paley e sua mulher Babe, na época da publicação paciente terminal com câncer, foram expostos sem a menor discrição ou consideração. Contou como os seduziu emocionalmente e sexualmente. Baixaria da grossa.
Acabou com Brando
Os Paley fecharam as portas para Capote. Com elas, centenas de outras portas também se fecharam. Payle na época não disse, como Marlon Brando em 1957, depois de ler The Duke in His Domain, O Duque em Seu Domínio, artigo publicado na seção Profiles, Perfis, da New Yorker: “Vou matar esse cara!!!”. Paley, quase vinte anos depois, deve ter pensado, que pena que não matou.
No longo texto sobre Brando na New Yorker, Capote descreve o encontro que teve com o astro em Kyoto, no Miyako hotel. Descreve com minúcia o apartamento oriental de Brando.
O Miyako, considerado o melhor e mais luxuoso hotel de Kyoto é um dos melhores do Japão e do mundo. Tem apartamentos à moda ocidental e à oriental. Esses dão de 10 a 0 nos outros. Em junho de 90 hospedei-me em um deles depois de passar um dia e uma noite em um templo Zen. O contraste foi brutal.
Capote ao descrever o Miyako o fez com propriedade. O meu apartamento era igual ao de Brando. Só não falou do futon sobre o tatame. Nem dos chinelos em couro preto com o logo do Miyako. As luminárias de papel.

Marlon estava em Kyoto para a filmagem de Sayonara. O diretor era o veterano Joshua Logan. O romance de James Michener foi a base para o roteiro. Brando convidou Capote para jantar no Miyako. Não no restaurante, no apartamento. O jantar estava marcado para as 19 horas. Capote chegou atrasado 20 minutos. O encontro entre Brando e Capote durou das 19h20 às 2h da manhã do dia seguinte. Beberam vodca antes e saquê durante o jantar ocidental. Ignoraram os sushis, sashimis, sukiakis e tempuras.
Brando desapertou o cinto e atacou com voracidade filés pantagruélicos, batatas fritas, três tipos de vegetais, spaghetti, salada, pão, manteiga, queijo, crakers e torta de maçã com sorvete.
Servidos por jovens garçonetes japonesas, sorridentes e solicitas em seus belos quimonos. Sibilino, Capote informa que Brando estava de dieta. Logan havia lhe pedido para perder cinco quilos.
As garçonetes sorrindo e rindo tratavam Marlon com intimidade chamando-o de Maron. O ele em japonês não existe. Os íntimos o chamavam de Mar. Tudo isso e muito mais Capote contou no perfil que traçou na New Yorker.
Morreu pela boca
Nessas quase sete horas, Capote deixou Brando falar. Perguntou pouco. Uma das perguntas foi como quebrou o nariz. Brando contou. Com detalhes. Outra, qual era seu ator predileto. Spencer Tracy, respondeu.
Reticente no início, aos poucos se abriu. Foi aí que se perdeu. Esqueceu que Capote estava ali para entrevistá-lo. Viera de New York para Kyoto para fazê-lo. Estava no Miyako, jantando com Brando, a serviço. Não tomava nota, não gravava, mas memorizava palavra por palavra que Marlon falava. E Marlon falou muito.
Não poderia imaginar que tudo que falou, Capote gravou mentalmente. Tudo que disse, Capote publicou. A mediocridade de Hollywood, a insistência de Tennessee Williams em fazê-lo participar de uma peça com Anna Magnani, sua relação com Logan, com a mãe, sua incapacidade em ampará-la, socorrê-la quando precisou, a impossibilidade de amar alguém. Falou pelos cotovelos. Capote limitou-se a ouvir. Naquela mesma noite passou para o papel tudo que ouviu sem tirar nem por.
O rei estava nu
De volta a Manhattan, Capote, como se diz na linguagem das cavalariças dos quartéis de cavalaria, lavou a égua. Além de descrever cada reação facial de Brando, piscar de olhos, jeito de mexer os lábios, expressões, gestos, maneirismos, revelou através das declarações do superastro que o rei estava nu.
Peladinho em Seu Domínio. O S maiúsculo de Seu não é erro de revisão. Tem razão de ser. É mais uma sutileza maldosa de Capote. Como se estivesse falando de Deus. E tudo que se refere a Ele, se escreve com maiúscula. Irônico, cruel, ferino até no título. Tirado de uma frase de Brando quando falou do seu jeito de conquistar as pessoas e como elas o reverenciavam como se ele fosse um duque em seu domínio.
Dezoito anos depois em Answered Prayers, Capote fez com vários amigos e conhecidos do jet set, do High Society, colunáveis, VIPs, em suma, ricos e famosos, o que fez com Brando. Não deixou pedra sobre pedra. Arrasou todos. Só que dessa vez quem morreu pela boca foi ele.

De repente, o Capote que em 1966 reuniu no Plaza Hotel de New York, no White & Black Ball, no Baile Branco e Preto, 500 seletos convidados que compareceram mascarados atendendo ao seu convite impresso em sofisticado papel branco com margens amarela e laranja, que dizia: “Mr. Truman Capote request the pleasure of your company at the Black and White Dance”... estava só. Em um mato sem cachorro, falando sozinho. Da noite para o dia, viroupersona non grata. Mal visto. Isolado. Evitado. Barrado. Foi o começo do fim.
O ostracismo que o jet set lhe impôs, doeu-lhe mais do que as críticas aos seus textos. Pesou mais. Significou mais. Para um exibicionista nato, que desfilava pelos salões do grand monde como se fosse uma escultura. Um bronze de si mesmo, brilhando ao sol, à luz dos refletores, não poderia haver maior castigo. Nada pior. Zeus não poderia ser mais cruel. O Refugio foi álcool, as drogas.
Sobreviveu nove anos. Bem menos que sua mãe. Dona Nina. Bebia desde os anos 20. Se matou em janeiro de 1954. Tomou uma dose fatal de Seconal. Tinha 46 anos. Capote a imitou? Matou-se?
Talvez! Afirmar ninguém pode. Porém, pode-se dizer com certeza que Capote não era homem de errar na dosagem de suas bolinhas. Erro não houve.
A risada final
Além disso, no dia anterior Capote entregou a Joanne a chave de um cofre que estaria em uma cidade americana ou do exterior. Não disse onde. Era preciso localizá-lo. Disse que nele estava Answered Prayer terminado e outros textos, inéditos e originais. O cofre foi encontrado. Não havia texto nenhum. Foi a piada final de Capote O simbolismo do gesto foi claro. Freud não precisa explicar.

Joanne está hoje com 75 anos, aparenta bem menos. Porque decidiu leiloar os bens de Capote não precisa e nem tem porque explicar. Afinal, guardou-os por 22 anos. Não precisava fazê-lo. Fez por que quis. Portanto...
Joanne está muito bem de vida. Continua a viver no casarão de Bel Air. Fazer dinheiro com o leilão, faturar, não foi seu objetivo. Disse que vai doar a renda do leilão para entidades que cuidam de animais. Adora bichos.
O mundo privado de Truman Capote
A Bonhams & Butterfields de New York, a casa de leilões que leiloou dia 9 de novembro, a partir das 13 horas, parte do espólio de Capote, catalogou 337 lotes.
O leilão, denominado The Private World of Truman Capote, O Mundo Privado de Truman Capote, a rigor, de privado, de particular, de íntimo, nada teve.
Nada se mostrou de sua alcova, de seus lençóis. Dos amantes fixos e ocasionais. Nem das amigas, belas e chiques do Café Society. As “swans”, cisnes, como as chamava.
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Não fizeram com Capote o que ele fazia com prazer e volúpia. Vasculhar e bisbilhotar a vida de ricos e famosos a partir de seus iates, carros, cavalos, mansões, jóias, mulheres e milhões de dólares, de libras.
Foi um leilão anódino. Igual aos de muitos espólios de americanos ricos. A biblioteca de Capote não tinha um livro raro, uma edição especial. Obras de arte havia quatro. Uma lito e três serigrafias. Uma lito de Chagall, de 1967, uma serigrafia de Robert Indiana, de 1968. Outra do fotografo de moda, Milton Green, retrato de Judy Garland e uma fotoserigrafia de Gary Reams, retrato de Capote. Só!

Nenhum peso pesado das artes. Nenhum Warhol, Nenhum Dalí. Dois artistas que também adoravam freqüentar os ricos e famosos. Ambos arroz de festa. Tão exibicionistas, frívolos e afetados quanto Capote.
Os três se conheciam. Nos anos 70 depois do ostracismo imposto pelo jet set, Warhol tomou Capote sob sua proteção. Quando Capote teve de deixar a revista Rolling Stone, depois de briga feia com Mick Jagger, dos Rolling Stones, Warhol o convidou para escrever para a Interview. O relacionamento entre os dois manteve-se até a morte de Capote. Se quisesse Capote poderia ter uma obra de cada um. Não tinha. Seu interesse pelas artes plásticas era mínimo. Suas gravuras deixam isso bem claro.
Dos 337 lotes que foram a leilão, o livro sobre Marlon Brando, The Duke in His Domain, O Duque em Seu Domínio. O exemplar da revista Esquire de novembro de 1975, com chamada na capa, La Côte Basque -1965 At Last: Truman Capote’s New Novel Answered Prayers - A First Look La Cote Basque – 1965. Finalmente: Novo Romance de Truman Capote Answered Prayers Prévia, uma foto de Capote tirada por Richard Avedon em 1967 e outra, uma polaroide tirada por Warhol, me chamaram à atenção. Nada mais.

Os cristais, os Baccarat, os Courrège, os Cardin, os Dunhill os Cecconi, os Miller, não me disseram nada. Apenas revelaram um Capote preocupado com grifes, ostentação e status.
Os leilões são terríveis. Mostram através dos objetos do falecido, gostos, tendências, fraquezas, segredos, nunca suspeitados. Entre os objetos leiloados havia uma cafeteira de prata do Plaza Hotel. Cinzeiros de bares e hotéis. Surrupiados.
Brincando dançou
Ao ver a foto do smoking que Capote usou no célebre baile do Hotel Plaza, em 1966, pensei no Capote adolescente, baixinho, 1 metro e 59 centímetros, envolto em uma capa preta de opera, os longos cabelos loiros caindo pelos ombros, a gravata borboleta colorida, andando pelos corredores da The New Yorker.
No jovem Capote, com dezessete anos, indo ao trabalho fantasiado e maquiado para chamar à atenção dos editores, dos redatores da revista, do pessoal do departamento de arte.
Do Capote que, de 1941 a 1943, primeiro como office-boy no departamento de contabilidade, depois no de arte, como clipping-boy, fez da The New Yorker palco em que atuou como se astro fosse.

Roupas coloridas, cabelo pintado, gestos amplos, mímicas, faziam parte da encenação diária. Gostava de imitar as pessoas. Perdeu o emprego por isso. Por imitar o poeta Robert Frost, lenda viva, respeitadíssimo na The New Yorker. A revista foi o primeiro e último emprego de Capote. A demissão o deixou livre para sempre. Para escrever.
Entre esse Capote travestido de dandy e de bufão, que logo mais escreveria Other Voices, Other Rooms e o que não conseguiu escrever Answered Prayers, a distância é enorme, gigantesca.
Isso, The Private World Of Truman Capote, mostrou. Só não viu quem não quis.
São Paulo, 15 de novembro de 2006 4H25
Carlos von Schmidt