Caprichos, Desastres, Touradas e Disparates

Goya auto retrato
Goya auto retrato

 


Dia 6 de fevereiro de 1799, o jornal Diário de Madrid trouxe um anúncio inserido por Francisco de Goya y Lucientes divulgando a exposição e comentando a realização da série de gravuras Los CaprichosOs Caprichos.

No anúncio Goya deixava claro que ao focalizar a prostituição, o adultério, a superstição, a bruxaria, não fazia uma crítica política nem religiosa. 
Fica patente que Goya não queria criar atrito com a monarquia de Charles 4º e muito menos com a Inquisição. Em 1799 Goya tinha 53 anos. Desde 1793, estava surdo. 
Há quem atribua à surdez a mudança de temperamento de Goya. A alegria anterior, à vontade de viver, desapareceu. A amargura, a mordacidade, a tristeza, a melancolia, a agressividade, a crueldade, surge em Os Caprichos, e também nas outras séries. Não é fruto da surdez. Da situação política e social, sim.

Goya  Deus a perdoe: E era sua mãe
Goya Deus a perdoe: E era sua mãe

A série Os Caprichos era composta por 80 gravuras. Estava à venda em uma loja de perfumes e bebidas da Calle del Desengano, próxima à sua casa em Madri. Dificilmente Os Caprichos encontrariam uma rua com um nome tão apropriado, Rua do Desengano, da Desilusão. A série custava 320 reales de vellón, em moeda de prata. As gravuras foram gravadas de 1797 ao início de 1799.

As gravuras, gravadas em chapas de metal inglês, foram trabalhadas com água-forte, água-tinta, ponta-seca, estilete, brunidor, raspador. Técnica que Goya também aplicou com variações a Os Desastres da GuerraTauromaquia e Disparates, em que também usou aguada, pincel, cinzel. 

Em Os Caprichos Goya foi mordente, corrosivo como o ácido nítrico, a água-forte. O ser humano na sua pequenez é flagrado ao se revelar mesquinho, vil, como a mãe que corrompe e prostitui a filha. O título da gravura é mais do que explicito, Deus a perdoe: E era sua mãe. Há outros como Belos conselhos em que uma jovem é aconselhada por uma mulher mais velha, talvez a mãe a se prostituir. Em Bem esticada, outra mulher, mãe, cafetina, aprova a meia, puxada, esticada até o joelho.

Goya Belos Conselhos
Goya Belos Conselhos
 

Nessas gravuras revela a prostituição antes de chegar às ruas, aos quartos. Goya mostra mães, cafetinas, conhecidas na Espanha como Celestinas, aconselhando, enfeitando, incentivando “as meninas”. 
Mas, Goya não se limita à prostituição. O adultério, o casamento, as superstições também mereceram sua atenção. As 80 gravuras de Os Caprichos são uma reflexão profunda sobre a condição humana. 
Não conheço nenhuma obra de arte sobre a guerra que tenha a força de Os Desastres da Guerra. E Guernica ? É um comentário subjetivo a partir de uma notícia publicada em um jornal, lida por Picasso e comentada por Dora Maar. Picasso estava são e salvo em Paris. Passeava pela Rive Gauche e freqüentava o Deux-Magots. Namorava Dora Maar e mantinha um longo relacionamento com Marie-Thérèse. A inclusão de ambas, amantes e rivais, em Guernica, não tem, a meu ver, absolutamente nada com a destruição da cidadezinha.

Goya  Esta bem esticada
Goya Esta bem esticada
 

A pintura passou a ser antológica, mas a rigor diz pouco do bombardeio em que espanhóis, italianos e alemães testaram seus aviões e armas contra um vilarejo indefeso e pacato. É subjetivo, alegórico e metafórico, demais. 

Não tem a força das gravuras que mostram as atrocidades que Goya viu. Enforcamento, fuzilamento, empalação, castração, estupro. Goya as gravou vendo as patrulhas de Napoleão nas ruas. Os franceses ficaram na Espanha de 1808 a 1814. Foram seis anos de terror. Vividos por Goya.

Goya Não há quem nos desamarre
Goya Não há quem nos desamarre
 

Os Desastres da Guerra é o resultado dessa vivência. Desenhá-la, gravá-la era crime. Goya sabia o risco que corria. Tortura e morte. Não se intimidou. Gravou os horrores da guerra. 83 gravuras. 80 estão no Masp. Só foram impressas em 1863, 38 anos após a morte de Goya. 

A meu ver ninguém o superou. Em nossos dias o que mais se aproximou foi Botero. Suas pinturas sobre a tortura na prisão de Abu Grhaib no Iraque são tão contundentes quanto as castrações ao sabre de Goya.

Goya Não querem
Goya Não querem
 

Depois de Os Desastres da Guerra, ou talvez simultaneamente, Goya desenhou com sanguina vermelha como sempre fazia, as imagens que deram origem à série A Tauromaquia. Em 1814, quando os franceses foram expulsos pelos espanhóis e pelos ingleses, a realeza e a igreja assumiram o poder. 
A impressão de imagens e texto passou a ser censurada. O Tribunal da Inquisição voltou a funcionar. As touradas foram liberadas por Fernando 7 Goya estava com 68 anos. Gravou A Tauromaquia talvez inspirado pela volta das touradas.

Goya Grande façanha! Com mortes!
Goya Grande façanha! Com Mortes!
 

Não se limitou às arenas. Foi mais longe. Ao tempo em que se caçava touros selvagens nas planícies. Mostrou a caçada a cavalo e a pé. O uso da lança. 
Nas arenas, toureiros famosos foram mostrados. Há uma gravura em que o celebre Pepe Illo é morto por um touro. Outra em que o touro pula a proteção de madeira, avança pela arquibancada e mata duas pessoas.

A visão de Goya da tourada difere fundamentalmente da de Picasso. SuaTauromaquia inspirou o andaluz, mas entre a ponta-seca de Goya e a água-tinta de Picasso, a diferença é brutal. Enquanto Goya mostra a crueza do encontro entre o toureiro e o touro, acuado por todos os lados por outros homens, a cavalo e a pé, meia dúzia no mínimo, armados de banderillas, arpões e lanças, Picasso em Tauromaquia de Pepe HiIlo , 26 gravuras, retrata a tourada, preocupado apenas com seu aspecto plástico, estético. Ausente da Espanha ia às touradas em Fréjus, Vallauris, Arles e Nîmes. Na França.

Goya Tão pouco
Goya Tão pouco


Foi a partir de uma tourada em Arles que Picasso, em 1957, gravou a suaTauromaquia. É plasticamente resolvida, mas não tem força. A meu ver parece uma série de fotos tirada por um turista. Fica muito à superfície. Não convence. 
Por mais estranho que possa parecer essa força, essa garra, existe em uma serie de linóleo que fez em 1959. Nessas gravuras feitas à goiva no linóleo, Picasso e a tourada se encontram.

Goya A desgraçada morte de Pepe Illo na arena de Madrid
Goya A desgraçada morte de Pepe Illo na arena de Madrid
 

Touros à parte, as 18 gravuras expostas, da série de 22, de Disparates completam esta magnífica exposição. É aqui que Goya mostra-se genial!!
Antecipa dois séculos, Freud, surrealismo e expressionismo. 

As chapas de Os Disparates foram gravadas de 1816 a 1823. As 4 chapas que faltam estão na França em coleção particular. As 18 foram compradas pela Academia de Bellas Artes de San Fernando em 1862. A primeira impressão, 360 gravuras, é de 1864.

Goya Cavalo Raptor
Goya Cavalo Raptor
 

A edição da Academia foi publicada com o nome de Provérbios. Esse nome é um terrível engano. As 22 gravuras foram nomeadas por Goya de disparate isso, disparate aquilo. Não há nos títulos bolados por Goya, máximas ou dito popular. Portanto não tem sentido a denominação. Os doutos mestres da Academia bobearam. 
Até as 4 gravuras publicadas pela primeira vez na França, em 1877, na revista L’Art, estão identificadas como Disparate conocidoDisparate pontualDisparate de Bestia,Disparate de toritos. Portanto, provérbios não têm o menor sentido.

Goya Modo de voar
Goya Modo de voar
 

Inacabada ou não, a série gravada por Goya há 184 anos é atualíssima.
Em uma Espanha pós Napoleão, conhecida como a “década ominosa”, “década nefasta”, governada com mão de ferro por Fernando 7º, tão repressivo quanto o francês, Goya, através alegorias e metáforas, fez duas críticas ao poder monárquico e religioso. 

Não foi por acaso que ensacou pessoas, colocou-as em galho de árvore, montou- as em cavalo alado, as fez brincar no carnaval. Com essas imagens exaltou a liberdade ou denunciou a falta.
Em 1824 Goya foi para França. Morreu em Bordeaux quatro anos depois.

Goya Disparate de Carnaval
Goya Disparate de Carnaval
 

No Masp, até 20 de maio, a exposição Goya é uma rara oportunidade de se ver a obra de gênio. Não perca essa chance. Nem deixe para a última hora. Desligue a televisão. Vá ao Masp. 

São Paulo, 25 de abril de 2007 13:13 Posted by Carlos von Schmidt