Chiclete incômodo

Folha Online - Reuters - China recolhe 600 mil chicletes
jogados na praça da Paz Celestial - 22/10/2002
A Agência Reuters divulgou hoje, 22 de outubro, pela Internet, foto fora do comum. Sui generis. Mostra 4 policiais chineses, retirando chicletes do chão da Praça Tiannanmen, Praça da Paz Celestial, aquela do massacre de 4 de junho de 1989.
Os soldados-garis, de uniformes completos, um deles com luvas brancas, limpam o chão preparando a praça de Pequim para o Congresso do Partido Comunista dia 8 de novembro. Foto estranha. Intrigante. Camaradas policiais limpando o chão do símbolo capitalista ocidental, o chiclete.
Para que a foto fosse mais explicita só falta lixeiras cheias de latas de Coca-Cola. Mesmo sem as latas a força do foto é imensa. Revela que além do McDonald’s, da Coca-Cola outros produtos capitalistas do ocidente, como o chiclete, também fazem parte hoje do dia-a-dia chinês.
Olho a imagem e pergunto: O que é que essa foto tem que a arte contemporânea da China, a arte da vanguarda chinesa, exposta na Fundação Álvares Penteado, até 3 de novembro, não tem? Por quê a fotografia é tão verdadeira. Crível?
É óbvio que sei a resposta. Não se escapa impune de uma revolução cultural, de uma lavagem cerebral gigantesca, de um patrulhamento ideológico brutal como o imposto à China por Mao Tsé Tung de 1966 a 1976. Não deve ser fácil ser artista plástico na China. È claro que é muito mais ser policial. Mesmo tendo que retirar chiclete de praça.
Mao morreu em 76. Para as artes sua morte não significou mudança radical. De jeito nenhum. Os devastadores efeitos repressivos da Revolução Cultural, da ação da violenta e arbitrária da guarda-vermelha não desapareceram de pronto. Foram necessários dez anos para as artes plásticas se manifestarem com mais desenvoltura. Mas, não muito.
Ignorar as condições políticas em que a arte contemporânea chinesa está sendo feita é desconhecer as limitações e proibições impostas pela Revolução Cultural. Por exemplo, a ausência quase total da abstração na exposição chinesa, não é ocasional. Praticamente não existe porque o abstracionismo foi considerado pelo Partido Comunista como arte alienada. Portanto proibido.
Não é preciso nenhum esforço para se chegar a Arte Degenerada de Hitler, ao Realismo Socialista de Stalin. Tudo farinha do mesmo saco. Sempre que o poder, de direita ou de esquerda, interfere na criação artística o resultado é caca.
Hoje se respira melhor na China do que na época da Revolução Cultural. Mas, como a foto da Reuters comprova, o fantasma de Mao continua presente. Não só no cartaz. Na política, na arte. Na vida cotidiana.
A cena dos policiais na praça poderia ter sido pintada por um dos artistas da mostra, mas com certeza não seria exibida em nenhum lugar. Nem na China, nem fora. Todos sabem que a espada de Mao como a de Damocles paira sobre suas cabeças. Assim sendo ...
Carlos von Schmidt
22/10/2002