Coisas Surreais

eu tento
criar coisas fantásticas coisas mágicas coisas como em um sonho o mundo precisa de mais fantasia
salvador dalí
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Mantive a disposição gráfica e a intencional ausência de maiúsculas que Dalí deu ao pensamento que o Victoria and Albert Museum de Londres usou como ponto de partida para reunir 300 objetos surrealistas de Dalí, Duchamp, Miró, Ernest, Magritte, De Chirico, Opppenheim, Man Ray, Oscar Dominguez, Tanguy e outros.
A frase, “o mundo precisa de mais fantasia”, diz com meridiana clareza que a exposição Surreal Things: Surrealism and Design, Coisas Surreais: Surrealismo e Design, que o V&A abriu dia 29 último, nada mais é do que a reunião de objetos criados por artistas estimulados pela total falta de fantasia dos objetos do nosso cotidiano.
A importância que o A&V atribuiu a Dalí, começa no material de divulgação deSurreal Things. O sofá, Lábios de Mae West, centralizado em um campo verde, ilustra a capa do livro homônimo sobre a exposição (foto abaixo) é também logo. Faz parte também de outros materiais.

Em Dalí Libertino e Surreal, que publiquei em 2005, no capítulo 12, Surrealista Nato, escrevi que em 1940, após a chegada de Breton a New York e do encontro que não houve, o New York Times perguntou-lhe o que era o surrealismo? Sem hesitar respondeu: “Le surrealisme c’est moi”, “ O surrealismo sou eu”. E continuou: “Não tenho dúvida por que sou o único a continuar. Eu não reneguei nada, ao contrário, eu tudo reafirmei, sublimei, hierarquizei, racionalizei, desmaterializei, espiritualizei”.
Hoje, 67anos após a bombástica declaração de Dalí, também sem hesitar, escrevo que Dalí era o surrealismo. Pintura, desenho, gravura e escultura à parte, Dalí foi um personagem surreal por excelência. Nos seus primeiro anos de vida com Gala, em Paris, depois da expulsão paterna em dezembro de 1929, Dalí idealizou e criou vários projetos para objetos. Surreais, inúteis. Coisa típica de Dalí.

Gala encarregou-se de vendê-los para aumentar a renda do casal que vivia com o cinto apertado. O sucesso de vendas de sua primeira exposição em Paris, na galeria Goemans em novembro/dezembro de 29, durou pouco. Depois da mostra, do fechamento da Galeria Goemans, os marchands ignoraram Dalí.
Não tinham o menor interesse por sua pintura. Por Gala, sim. Era bonita e sexy. O assédio sexual era constante. Só havia possíveis negócios se houvesse cama.
Os projetos que Dalí criou nessa época são dignos de nota. Não sei se fazem parte de Coisas Surreais. Cito alguns. A relação completa está em La Vie Secrete de Salvador Dali,edição La Table Ronde.

Projetos: “Unhas artificiais com pequenos espelhos. Manequins transparentes para vitrines. Cheios de água. Com peixes nadando. Móveis de baquelite moldados sobre o corpo do comprador. Esculturas-ventilador giratórias. Sapatos com molas para facilitar a caminhada. Seios falsos suplementares nas costas.
Poderão revolucionar a moda por cem anos.
Objetos destinados aos prazeres mais secretos, físicos e psicológicos, entre os quais alguns deverão ser desagradáveis ao ponto do comprador quebrá-los em mil pedaços contra a parede, enquanto que outros provocarão exasperação e ranger de dentes, igual aquele que se tem quando um garfo raspa ruidosamente uma mesa de mármore . Nervos à flor da pele, o comprador não terá outra saída a não ser jogar contra a parede o objeto que ao se quebrar fará ruído muito agradável.”

Dalí reclamava que muitas de suas idéias foram roubadas. Na época não se falava em apropriação. De fato, antes de Dalí não se falava em unhas artificiais. Lojas na exibiam manequins transparentes, e keds até recentemente não tinham molas. Muitas das formas aerodinâmicas que desenhou para automóveis, fazem parte de design de carros famosos. Inspirou e continua a inspirar.
Não diria que o sofá Lábios de Mãe West é seu objeto surrealista pontual, icônico. O Telefone Lagosta, O Sapato de Gala, chapéu feito por Elsa Schiapparelli, em forma de sapato, os broches dos lábios entreabertos, Lábios de Rubi, com rubis e pérolas, inspirado na frase poética, “lábios de rubis” e o “Olho do Tempo”, rubis e diamantes em forma de olho, são tão instigantes e provocantes quanto o sofá. Surrealismo puro.

Li várias críticas publicadas em Londres. Todos até agora foram unânimes em reconhecer que Surreal Things escapou de ser uma grande exposição kitsch. A curadora Ghislaine Wood não deixou que isso acontecesse. Escreveu-se que graças à sua visão a exposição em nenhum momento é um tédio. Muito pelo contrário. Mantém o espectador ligado. O tempo todo.
Há de tudo para todos. Do Ceremonial Hat for Eating Bouilla-baisse, Chapéu Cerimonial para Comer Bouilla-baisse, de Eileen Agar, coberto por pedaço de rede de pescar e decorado com conchas e estrelas do mar. É chapéu para se comer caldeirada de peixe, ao retrato do amigo e patrocinador de Dalí, Edward James, de costas, de frente para o espelho, mas sem mostrar o rosto. O espelho reflete a parte posterior da cabeça e as costas. É um meta retrato. Anti retrato. A Reprodução Proibida.De Magritte. À cadeira de estar de Oscar Dominguez em forma de carriola. Construída em madeira pesada, maciça. A caçamba forrada com cetim vermelho brilhante.

Além da influência do surrealismo no teatro, no balé, no cinema, a exposição mostra que nos dias de hoje, designers como o italiano Carlo Mollina alcançam preços surreais por suas peças. Uma de suas sinuosas mesas foi comprada ano passado por 3 milhões e 500 mil libras. Mais de 7 milhões de reais. Nada é mais surrealista do que uma mesa valer essa fortuna. Breton, que sempre foi contra a comercialização dos objetos e pinturas surrealistas, e expulsou de Chirico e Ernest do grupo surrealista, por colaborarem com figurinos e cenáriios para um balé, deve estar na tumba, escrevendo manifestos diatríbicos contra Surreal Things.

Surreal Things é dessas exposições que gostaria de ver.
Coisas Surreais permanecerá em exibição no Victoria and Albert até 22 de julho de 2007.
São Paulo, 1 de abril de 2007 17:17 Posted by Carlos von Schmidt