Dalí, o começo do fim


© R. Cayre Salvador Dali Aquarela - São Paulo 2002
a partir de foto de Pepe Diniz - New York City 1975

 

Robert Descharnes, fotógrafo, cineasta, escritor crítico de arte e curador, conviveu com Salvador Dali de 1950 até a morte do pintor em janeiro de 1989. Inicialmente fotografou Dali. Depois dirigiu documentários sobre o catalão e sua obra. Acabou amigo e confidente.

Escreveu muito sobre Dali. Durante 39 anos viu Dali na intimidade e sob as luzes dos refletores. Documentou o que era possível. Muita coisa não pode fazê-lo. Era íntimo. Pessoal demais. Anotou. Testemunhou. O que conseguiu registrar, documentar é surpreendente. Fotos, filmes, documentos, livros, rascunhos, estudos, anotações, objetos fazem parte desse arquivo único. O que não pode ser catalogado, arquivado, faz parte do arquivo pessoal de Descharnes. Ou de sua memória. São "histórias inéditas, de bastidores, de alcova". A maioria impublicável, faz parte dessa memorabilia proibida que talvez um dia venha a luz. Cerca de 60.000 documentos. Hoje, seu arquivo sobre Dali é o maior e o mais completo que existe

Ninguém sabe mais sobre Dali, do que Descharnes. Esse saber fez dele o expert, o especialista a quem galerias, museus, colecionadores e leiloeiros de todo mundo recorrem quando o assunto é Dali.

Depois da morte de Dali, Descharnes organizou e curou várias exposições de Dali. Uma delas esteve no MASP em 1998. A mostra, Dali Monumental reuniu o maior conjunto de obras do artista. Especialmente esculturas, nunca vistas no Brasil. Dessas, um bronze de 1956, Rinoceronte vestido de rendas, enorme, 350x460x260 cm, foi a grande atração.

Aproveitei a presença de Descharnes para saber porque Dali e Gala em 1980 saíram às pressas de New York deixando o Hotel San Regis sob a discreta vigilância do FBI. Afinal, o que houve realmente?

Amanda Lear, a jovem estudante de Belas Artes em Londres e modelo inglesa por quem Dali se enfeitiçou em Paris e curtiu com o beneplácito de Gala, de 1965 até a saída dos Estados Unidos em 80, em seu livro Dali d’Amanda, Dali de Amanda, toca no assunto. Nas entrelinhas deixa claro que não tinha por Gala a menor afeição. Percebe-se que ambas suportavam-se. Para Amanda Gala foi a responsável por tudo de mal que aconteceu a Dali em New York a partir dos anos 80.

Dali e Gala estavam nos Estados Unidos como turistas. Dali que se considerava cidadão do mundo ignorava por completo as leis da imigração que proíbem a turistas qualquer atividade comercial ou de trabalho. Sem dar a mínima vendia em Manhattan como se estivesse em Paris. Assinava contratos, fazia negócios.

Movimentava centenas de milhares de dólares. Parte desses dólares, Gala que nunca foi santa e cujas aventuras sexuais dariam um livro provocante, doou a um amante. Um ator que interpretava Jesus Cristo em Jesus Christ Super Star.

Dali sabia do caso. Chegou até a desenhar o rapaz pregado na cruz. O desenho é de 1976. Está catalogado. Só não sabia que a aventura de Gala quatro anos depois do desenho iria lhe custar muito caro. Em 80 o caso com o rapaz continuava.

Os "presentinhos" de Gala levaram a Receita Federal e o FBI até Dali. A coisa era séria. O bigode tremeu. Deram-lhe 24 horas para deixar o país com Gala. Foram expulsos. Proibidos de voltar. Terminava assim o período San Regis. O hotel em que Dali deslumbrava ricos e famosos com suas extravagantes recepções e festas. Os Estados Unidos e New York ficaram para trás. Exposições e contratos foram cancelados. De volta a Espanha Dali completamente arrasado internou-se em um hospital em Marbella.

Nesse hospital descobriu-se que Dali estava com a doença de Parkinson. Foi o começo do fim. O amor do casal, outrora cantado aos quatro ventos, transformou se em novela mexicana de quinta categoria. Dali, frágil, incapaz de desenhar, pintar, de escrever foi hostilizado e humilhado permanentemente por Gala, sua criatura, musa e paixão, o único e grande amor.

Foram de baixaria a baixaria até a morte de Gala em 82. Sete anos depois, o que restara do "divino Dali", também acabou. Um velho trêmulo, vacilante, apavorado, balbuciante e babão. Magérrimo, pesando não mais do que quarenta quilos, de camisolão e barrete brancos, morreu na torre de Galatéia.

Foi enterrado com grande espalhafato e com todas as honras de estilo pelo governo espanhol, na cripta do Museu Dali em Figueras. Na verdade enterraram o Marquês de Pubol, o franquista declarado. Dali, o maravilhoso pintor, o brilhante escritor, o visionário, o exibicionista, o "divino Dali", esse não conseguiram enterrar.


Carlos von Schmidt
6/10/2002