Fotocolagens de Christine Burrill

Índio  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée
Índio  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée

 

Já tinha ouvido falar de giclée, mas não tinha visto nenhum. Em abril de 2001, na exposição de Christine Burrill no Instituto Moreira Salles de São Paulo, tive a chance de ver giclées através de fotocolagens criadas por ela e conhecê-la.

Em nota que publiquei no Villaboim News, número 59, de maio de 2001, junto com artigo do cineasta Walter Salles, O Mosaico do Brasil, e entrevista minha, escrevi descrevendo-a: “Alta, magra, loira, 54 anos, articulada, inteligente. Nos entendemos rapidamente. Vapt vupt.”

Falou-me de seu trabalho e da técnica do giclée. Acredito que Christine Burrill foi a primeira artista a apresentar, no Brasil, gravuras realizadas com a nova técnica.

Dois anos passados já vemos vários artistas seguindo as pegadas de Burrill. Suas fotoscolagens podem ser vistas no Instituto Moreira Salles de Porto Alegre, até 29 de fevereiro de 2004.

O Mosaico do Brasil
 

Christine Burril, documentarista e diretora de fotografia, trabalha com imagem em movimento há mais de 20 anos. Os seus documentários receberam diversos prêmios internacionais e foram mostrados na BBC, PBS e em outros canais culturais de televisão.

No início dos anos 80, Christine Burril começa a realizar um trabalho de pesquisa fotográfica, que ela desenvolve paralelamente ao ofício de cineasta. Documenta a insurreição zapatista em Chiapas, as tribos na Amazônia e os conflitos raciais em Los Angeles.

Influenciada pelas experiências de colagem fotográfica iniciada por David Hockney a partir de 1982, Christine Burrill passa a dedicar-se com mais assiduidade à fotografia. Começa a investigar as questões da perspectiva e do tempo, duas dimensões que estão na base do trabalho fotográfico desenvolvido por Hockney.

Confrontando-se em 1982 com um espaço que não podia condensar em uma única imagem – o Grand Canyon -, Hockney resolve retratá-lo por meio da justaposição de diversas fotografias. “Passei a desenvolver um trabalho narrativo pela primeira vez, entretanto num outro espaço temporal”, disse. 

Com as imagens realizadas em Kyoto em 1983, no jardim do templo Ryoanji, Hockney descobre que é a questão da perspectiva fotográfica, diretamente derivada da noção renascentista da perspectiva definida por Brunelleschi, que pode ser subvertida. 

Partindo do seu desinteresse pelo naturalismo e pela percepção de que as imagens cubistas, apenas aparentemente distorcidas, realizadas por Picasso, eram, segundo ele, muito mais próximas da realidade, Hockney chega à conclusão de que “existem diferentes formas de realismo, e algumas são mais reais que as outras.”

Se as colagens fotográficas desenvolvidas por Hockney propõem uma visão polifônica , multifacetada daquilo que o olho vê, próximas portanto da pintura cubista, aquelas realizadas por Christine Burrill derivam diretamente do seu trabalho de documentarista. Não é apenas um processo de observação, e sim de imersão numa realidade específica, que é proposto aqui.

Cada colagem contém entre 100 e 150 imagens registradas em momentos diferentes. Às vezes, o mesmo personagem aparece em várias partes do quadro – em diversos momentos da sua vida. Ao contrário da imagem fotográfica, que congela o objeto retratado em um único fotograma, temos aqui a possibilidade de acompanhá-lo ao longo do tempo. Como num documentário, o olho registra em continuidade, e não em um único momento.

Este trabalho vertical e não horizontal de observação, de eleição daquilo que será registrado, não se faz em um dia. Ele é às vezes, resultado de meses de convívio e imersão numa realidade. Daí a qualidade reveladora e intimista das colagens de Christine Burrill, como se distância entre o fotógrafo e os objetos fotografados deixasse de existir.

Existe por traz dessas imagens um desejo comovente de alteridade. Este é um dos princípios que movem o trabalho de Christine Burrill há anos. Esta percepção política da realidade tomou corpo quando ela chegou ao Brasil, em 1968, em pleno regime militar. Não é por acaso portanto que todas as imagens desta exposição foram registradas em nosso país.


Walter Salles

O fornecedor  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée
O fornecedor  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée
 
Entrevista com Carlos von Schmidt
 

Carlos von Schmidt: No que a sua fotocolagem difere da de Hockney, seu inspirador?

Christine Burrill: O meu lance na fotocolagem é tentar fazer uma imagem menos dividida pelo tempo e mais unificada pelo espaço físico, pelo lugar. Eu me interesso em fazer uma imagem de partes diferentes, tiradas em tempos diferentes, mas que é uma coisa só, unificada.

CvS: Tem a ver com as sobreposições do Picasso? Com o cubismo?

CB: O Picasso fez um trabalho lindo sobre uma mesa que ele retratou de frente, por trás e pelos lados. Achei interessantíssimo. Mas meu interesse é outro. Meus assuntos, temas, nunca interessariam o Picasso. Ele estava mais voltado para a vida diária, para o cotidiano dele. Estou mais interessada em assuntos como os índios, manifestações populares, para mim muito mais importantes na vida social. A revolta em Los Angeles em l992 me levou a fazer l2 painéis muito grandes sobre o acontecimento.

CvS: Li no catálogo da exposição que você descobriu a Guerra do Vietnã no Rio de Janeiro em l968, através de amigos brasileiros. Por favor, como é que foi?

CB: Não é que descobri o Vietnã no Rio de Janeiro. Eu sabia, mas não tinha opinião. Eu tinha 2l anos e ainda não tinha decidido se era a favor ou contra a guerra. Foram esses amigos aqui no Brasil que me deram toques sobre a situação política mundial. Isso me fez tomar consciência do que estávamos vivendo e fiquei decididamente contra a guerra. Ao voltar para os Estados Unidos trabalhei muito em movimentos contra a Guerra no Vietnã.

CvS: Você fez artes plásticas. Depois, mestrado em cinema. De modo geral, tanto o seu documentário quanto a fotomontagem são engajados. Esse engajamento não lhe causou problemas, dificuldades?

CB: Problemas? Dificuldades?

CvS: Seus assuntos são polêmicos, políticos, quentes. Assuntos que incomodam.

CB: São os assuntos que mais me interessam. E ao público em geral também. O primeiro filme em que trabalhei fui montadora. Em 1971. Um documentário sobre um grupo de 50 pessoas trocado pelo embaixador suíço seqüestrado no Rio de Janeiro.

O grupo foi levado para o Chile. Fiz a montagem em Los Angeles. O filme chama-se Brasil, um relatório da tortura. É de Haskell Wesler e de Saul Landau.

Em breve vão passá-lo no Rio. Acho que é importante para a história do Brasil. É esse tipo de assunto que me interessa.

CvS: Em seu texto no catálogo você se refere a Rembrandt, Vermeer e Hokusai. Você esteve no Japão? Foi ao templo Ryoanji, ao que Hockney foi?

CB: Estive quatro vezes no Japão. A primeira quando tinha 16 anos. Fui com um grupo do Rotary. Fiquei 42 dias. Isso em 1964. A visão que tive diferiu muito das que tive depois e da que tenho agora. Adoro a antiga civilização japonesa.

Nas vezes que voltei, foi para filmar. Hoje acho que o Japão tem os mesmos problemas do resto do mundo. Iguais aos de São Paulo. Tem gente demais. Isso faz com que a graça da vida cotidiana desapareça.

CvS: O que você sentiu ao visitar o jardim do Rioanji em Kyoto?

CB: Foi há muito tempo, mas é uma lembrança espetacular que tenho da areia. Dos desenhos, das linhas na areia; isso ficou na minha memória. A linda curva na areia, as pedras, é deslumbrante.

CvS: Passando do jardim japonês para a selva amazônica. Como é que índios reagem à sua presença, ao seu trabalho no Pará?

CB: Acho que eles têm a mesma reação que todo mundo tem. Quando vêm que vou tirar uma foto não ligam muito. Mas eu fico horas fotografando, batendo centenas de fotos.

Fico ali, fotografando, fotografando, fotografando... Acho que eles pensam que sou uma maluca. Fico lá batendo, batendo, batendo. Eles riem, riem muito. Há três semanas estive lá com os assurinis e fotografei uma índia socando milho. Ela ria, ria, ria porque eu não acabava nunca de fotografá-la.

CvS: Assurini? De que região do Pará?

CB: Do sul. Numa reserva que fica na região em que o rio Iriri entra no Xingu.

CvS: Você se expressa muito bem em português. Como foi que você aprendeu a falar "brasileiro" com esse jeito carioca, sem sotaque?

CB: Obrigada, muito obrigado. Eu sei que não falo perfeitamente bem...

CvS: Fala sim. Praticamente não tem sotaque. Seu "português" é fluente.

CB: Obrigada! O negócio é o seguinte: eu vim para o Brasil, Rio de Janeiro, em l968. Vim para passar um ano. Tinha uma bolsa de estudo do governo americano para estudar português.

Era uma bolsa para quem quisesse estudar uma língua que não fosse inglês, francês, italiano, espanhol, alemão. Podia ser português, japonês e outras. Eu estudava línguas, já falava francês.

Passei seis semanas na University of Wisconsin fazendo um curso intensivo. Tive boa formação. E aqui no Brasil fiz questão de só falar português. Meus amigos eram todos brasileiros. Foi assim...

CvS: Um antropólogo, um sociólogo, vendo suas fotocolagens dos índios, garimpeiros, baianas, encontrariam traços sócio-antropológicos reveladores de mudanças radicais. Você tem consciência disso?

CB: Talvez. Eu acho que o que me interessa mais, os assuntos que me interessam mais, são os que envolvem grupos humanos. Como esses grupos se organizam. Seja o Carnaval, índios preparando-se para um ritual, uma festa, grupos manifestando-se nas ruas.

O grupo que fotografei em Serra Pelada, doze homens em volta de uma mesa, jogando no bicho. Isso me interessa muito. Tenho outros grupos jogando bilhar, dominó. Fotografei no Marrocos.

Interessa-me muito como as pessoas se organizam para jogar. O jogo é o mesmo, aqui no Brasil, no Marrocos, nos Estados Unidos. Mas a organização dos grupos não é. Cada grupo tem seu jeito, características próprias, modos diferentes de ser.

CvS: Por favor, fale de suas fotocolagens que evoluíram para gravura. Qual foi o processo? Que gravura é essa?

CB: Pela primeira vez, nós fotógrafos temos condições viáveis de processar em casa nossas imagens em cor. Antes isso só era possível com o preto e branco. Colorido era muito caro e trabalhoso.

Não dava para fazer em casa. Era complicado. Agora, com o processo de digitalização eu escaneio todos os negativos de 35 milímetros, junto em camadas no programa Photoshop.

Isso me permite ter um arquivo de 300 megabytes. Mando fazer em impressora grande, a Iris Graphic Print. Trabalha com jato de tinta. O processo chama-segiclé.

A tinta é aplicada em papel aquarela de alta qualidade, o Somerset. A gravura é como as ampliações que os fotógrafos faziam antigamente. Grandes ampliações. A gravura dura muito tempo. Esse ano conseguiram novas tintas que resistem a mais de 60 anos.

CvS: E a tiragem? Qual é ?

CB: 100 cópias. Edições limitadas.

CvS: E o processo? Industrial?

CB: Não. Cada imagem é impressa em um rolo impressor, uma a uma.

CvS: Você vem ao Brasil desde l968. Nesses 33 anos veio várias vezes. O que você diria do Brasil de hoje?

CB: Eu adoro o Brasil. Adoro o espírito das pessoas aqui. A diferença que sinto entre o povo americano e brasileiro é que o brasileiro é mais alegre, mais acolhedor. É um povo que gosta de viver.

Para mim essa é a grande diferença. Acho que o Brasil está crescendo, descobrindo uma identidade e assumindo-a. O Brasil que conheci em 1968 era um. O de hoje, sem a ditadura, é outro. Quando o Brasil retomou a democracia foi uma grande alegria para mim. Emocionante!!!

O encontro dos homens  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée
O encontro dos homens  Christine Burrill  Fotocolagem Giclée



Carlos von Schmidt
São Paulo 14 de outubro de 2003 15 horas