Lula, Drummond e van Gogh

Farewell, Carlos Drummond de Andrade

FAREWELL. Carlos Drummond de Andrade
Editora Record. 190 páginas. 

 

Na segunda-feira, 28 de outubro, Lula deixou São Bernardo para encontrar-se com correligionários no Hotel Intercontinental, em São Paulo. Ao seu lado (na foto da Folha), o senador Suplicy tem na mão dois livros. Caminhos de João BrandãoFarewell. Ambos de Carlos Drummond de Andrade. 

O primeiro, publicado em 1970, é de crônicas. O segundo, em 1996, de poemas. Após a morte de Drummond em 1987, foi encontrado no escritório em seu apartamento, pronto para ser editado.

Aos repórteres, ainda no edifício em que mora em São Bernardo, Lula disse: “Vou me deliciar com esses Carlos Drummond para me preparar espiritualmente para os próximos dias.” Minutos depois estava em um helicóptero voando para São Paulo.

Hoje, 31 de janeiro, há um mês da sensacional posse, pergunto-me: teve tempo de ler? Deliciou-se? Preferiu a prosa ou a poesia? 

Gostaria de saber qual dos livros preferiu. Pelo seu jeitão, acho que tem mais a ver com as crônicas. João Brandão é um João ninguém. Dos muitos que Lula conheceu e conhece. Uma daquelas 150 mil pessoas que foram às ruas e praças em Brasília para vê-lo subir a rampa do Planalto.

De tudo que aconteceu desde então, duas coisas, a história dos livros e a do café com farinha matinal, foram para mim pontuais. Se for fiel à sua origem, sem exibicionismos e ostentação, sem seguir as dicas, nem sempre certas dos marqueteiros de plantão, autêntico, Lula não tem como errar.

Mas, não me surpreenderia se, de repente, Drummond não lhe falou com um ou mais poemas diretamente à alma. O poeta, na sua simplicidade e humanidade, tinha o dom de sentir e captar o povo, o João ninguém.

Foi assim com um tal de van Gogh, um pintorzinho holandês que, cansado de ser ignorado, humilhado, deu um tiro no coração. Errou. Não morreu na hora, como queria. Sobreviveu dois dias. Tinha 37 anos.

Os poemas abaixo fazem parte da série que Drummond intitulou Arte em Exposição, inspirados em obras de 27 artistas, da pré Renascença a Tiradentesde Portinari. Drummond em Guignard na Parede, publicado nesta seção, revela sua faceta de conhecedor de arte. 

Os poemas dedicados a van Gogh não deixam dúvida quanto a isso e enfatizam que o poeta ia além das pinceladas, muito além.

Um par de sapatos (1885)
Um par de sapatos
Óleo sobre tela. 37,5 x 45 cm. 1885.
Van Gogh Museum, Amesterdã, Vincent van Gogh Foundation


Arte em Exposição

SAPATOS

Cansaram-se de caminhar
ou o caminho se cansou?


A CADEIRA

Ninguém está sentado 
mas adivinha-se o homem angustiado.


CAFÉ NOTURNO

Alucinação de mesas
que se comportam como fantasmas
reunidos
solitários
glaciais.


JARDIM DO MANICÔMIO

O jardim onde passeia a ausência de razão
é todo ele ordem natural.
a terra acolhe o desvario
que assimila a verdura e a leveza do ar.


 

Os sapatos, a cadeira, o café, o jardim, foram pintados por van Gogh a partir de 1885. Os sapatos foram comprados para servirem de modelo para uma pintura. Comprou-os no mercado das pulgas de Paris. Antes de pintá-los, usou-os um pouco, molhou-os na chuva para envelhecê-los. Há várias versões desse par de sapatos. Tinha 32 anos quando pintou. Cinco anos depois, em um dia de muito sol e luz, sentou-se sobre um monte de feno e disparou.


Carlos von Schmidt
31 de janeiro de 2003, meia-noite

Farewell. Carlos Drummond de Andrade
Editora Record. 190 páginas.