O Antonioni de cada um

 Monica Vitti  A Aventura
Monica Vitti A Aventura

 

Em Gênios ao telefone falei que Bergman e Antonioni fizeram parte de minha vida. Disse que não era fácil escrever sobre a morte dos dois. Fizeram parte do meu dia-a-dia. Mais Antonioni do que Bergman. Às vezes nos ano 60, 70, ao viver certas situações eu me via na pele de Gabriele Ferzetti, namorado de Claudia, Mônica Vitti, emL’Avventura,1960. 

Antonioni mostrava o que eu vivia. Tudo era muito igual. Minha vida e os personagens de Antonioni se fundiam. Não sei se a vida imitava a arte ou a arte imitava a vida. As pessoas que me cercavam também pareciam personagens fugidas dos filmes de Antonioni. Todos lutando ou fazendo de conta que lutavam para superar suas fraquezas, ou se entregando a elas. Escritor, marchand, bailarina, corretor da bolsa de valores, jornalista, pintor, empresária teatral, diretor de tv, dramaturgo, menina de programa, universitária, contrabandista, traficante, militante esquerdista, cineasta, um grupo heterogêneo indo e vindo. 

Eu era um pequeno editor. Publicava autores jovens. Em 65 lancei o jornal artes:. A redação era no centro de São Paulo. Na Nestor Pestana, número 30. Ficava no 21º andar. Do terraço via os fundos do Cine Bijou na Praça Roosevelt. Era lá que via os filmes de Antonioni e de Bergman. Os de Antonioni, muito mais do que os de Bergman, me deixavam arrasado.

Antonioni
Antonioni

À medida que L’Avventura, 1960, La Notte, 1961, L’Eclisse, 1962, completaram a trilogia, encontrei cada vez mais no Sandro de Gabriele Ferzetti de A Aventura, no Giovanni de Marcelo Mastroiani de A Noite, no Piero de Alain Delon, emEclipse, na Claudia, na Vittoria, na Valentina , de Mônica Vitti nesses três filmes, o meu personagem. Eles e elas eram o que eu era, eles viviam o que eu vivia. 

Uma vez, depois de descer a Serra do Mar até Santos, calado, sem trocar uma palavra com minha mulher, que eu enganara e traíra, a vi dançar em cima de uma mesa de um bar do cais do porto. De mini-saia, coxas à mostra, seios visíveis sob a camiseta transparente, rebolava e se exibia, bolinada, apalpada e beijada por marinheiros. 

Uma das pessoas mais decentes leais e fiéis que conheci em toda minha vida, fazendo a putinha, por minha causa. Dava-me o troco. A situação, o local, a tensão, a angustia era Antonioni puro.

Antonioni
Antonioni

Nos meus escritos às vezes encontro cenas que só podem ter sido inspiradas por Antonioni. Por exemplo, no último parágrafo de Na Cama com Picasso, escrevi:

Era primavera. Parecia inverno. Em Mougins, a praia estava deserta. Ventava. Fazia frio. Um vira-lata latia. Em Notre-Dame-de-Vie, o vazio era imenso. O silêncio, absoluto”. 

Tem tudo de rubrica de Antonioni. Cena de cinema. Era 10 de abril de 1973. O dia em que Jacqueline Roque, sozinha, a 170 quilômetros de Mougins, enterrou Picasso. 

Sempre que escrevo cenas como essa, Antonioni me vem à mente.

Antonioni La Notte Monica Vitti
Antonioni La Notte Monica Vitti


Scorsese começa seu artigo The Man Who Set Film Free, como eu também começaria. Em letras maiúsculas escreveu: “NINETEEN-SIXTY-ONE.... a long time ago”… “MIL NOVE CENTOS E SESSENTA E UM… há muito tempo atrás”.

Fala do cinema ou dos cinemas em que viu L’Avventura. Diz que não lembra se foi em um cinema da Rua Oitenta ou se foi no Beekman. Mas, lembra-se da música da primeira cena, do céu brilhante, do iate, das pessoas precisamente delineadas em preto e branco. Depois, com o desenrolar da ação o desaparecimento de Anna e o envolvimento de Claudia e Sandro. 

Scorsese observa que para ele o movimento da câmera passou a ser mais importante do que a busca por Anna. Antonioni imprimia à câmera um ritmo nunca visto antes no cinema. Estabelecia um novo “timing”, “tempo”. Através desse “timing” os Sandro, Piero, Claudia, Vittoria, eram flagrados no que tinham de mais íntimo.

Cartaz  de Eclipse na Itália
Cartaz de Eclipse na Itália

Em “L’Avventura Antonioni nos fez tomar consciência de algo estranho e desconfortável”. “Seus personagens flutuavam através da vida, de impulso a impulso, e tudo eventualmente era revelado como pretexto: a busca era um pretexto para estar juntos, e estar juntos era outro tipo de pretexto, algo que dava forma e significado para suas vidas”.

Scorsese diz que voltou ao cinema para assistir a L’Avventura várias vezes. Quanto mais via o filme mais se convencia de que “a linguagem visual de Antonioni nos mantinha em foco com o ritmo do mundo: os ritmos visuais do claro e do escuro, das formas arquitetônicas, das pessoas colocadas como objetos em paisagens que sempre parecem assustadoramente vastas”.

Antonioni
Antonioni


Comenta que L’Avventura lhe deu o maior choque que viveu no cinema. Maior que o provocado por Breathless, de Godard, Hiroshima, Mon Amour, de Resnai ou La Dolce Vita de Fellini.

Em nível mais pessoal Scorsese conta que se encontrou com Antonioni, inúmeras vezes. Houve uma em que passaram o Dia de Ação de Graça, juntos. Acabara de viver um período muito difícil. Disse a Antonioni que a presença dele naquela noite era muito importante para ele.

Anos depois quando Antonioni sofreu um derrame cerebral e ficou parcialmente paralisado e sem poder falar, Scorsese ajudou-o com o projeto de “The Crew”. O roteiro era de Antonioni e de seu colaborador freqüente, Mark People. Infelizmente não foi à frente.

Antonioni
Antonioni


Scorsese encerra o artigo dizendo que ele conhecia as imagens de Antonioni, muito mais do que o conhecia. “Imagens que continuam a me assombrar a me inspirar. A expandir meu senso do que é estar vivo neste mundo”.

Para mim essas imagens também foram e ainda continuam a ser importantes. Também me deram a sensação de estar vivo neste mundo. Dizer o que mais? Mais não tenho. 

São Paulo 16 de agosto de 2007 12H40

Carlos von Schmidt 

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