O piloto está azul

Destroços da cauda do Boeing 737-300


O vôo ZU 522 da Helios Airways deixou o aeroporto de Lanarca em Chipre às 9 da manhã. Destino Praga. Escala em Atenas. Tempo de vôo de Lanarca a Atenas, 1 hora e 23 minutos. 
A bordo do Boeing 737-300 estavam 115 passageiros. Entre esses 48 meninos, meninas, adolescentes. Dezessete com menos de dezesseis anos. Um deles tinha quatro. Tripulantes havia seis.


Às 9h10 o piloto comunicou ao controle aéreo de Chipre que estava com problema com a climatização e a pressurização.
Às 9h37 o Boeing entrou na zona de controle aéreo de Atenas. Não fez contato através do rádio. O controle chamou. Não obteve resposta. Chamou de novo. Nada.

No radar, o avião continuava em curso. A uma altitude de 33.000 pés, 11.000 metros. Chamou outra vez. Silêncio total. No radar, o 737 entrou no espaço aéreo grego. Sem nenhum contato. 

A partir daquele momento o Boeing da Helios passou a representar perigo para a segurança da Grécia. Entrou na categoria de renegade, renegado, hostil. 
A Força Aérea foi acionada. Às 10h55 dois Falcons F-16 foram ao encontro do Boeing. 

Interceptá-lo. Auxiliá-lo na medida do possível. Escoltá-lo. Guiá-lo. Derrubá-lo se em mãos de terroristas, se representasse ameaça. Depois de 11 de setembro o procedimento é esse. Não importa quantos passageiros estejam a bordo. Nem quem sejam. 
A ordem é neutralizar o avião. Abatê-lo. As imagens do World Trade Center continuam vivas. 

Às 11h20 a 34.000 pés, 11.333 metros, os dois F-16 flanquearam o 737. A visão que tiveram do cockpit parecia cena de filme de Bruce Willis em Duro de Matar 2.

O lugar do comandante estava vazio. O co-piloto jazia largado sobre a poltrona da direita. Inconsciente? Morto? Muito provável. Máscaras de oxigênio dançavam no ar. Na cabine, máscaras também balançavam sobre os passageiros imóveis, petrificados, presos aos assentos pelos cintos de segurança. Ninguém se mexia. O único movimento que os pilotos viram foi no cockpit.

Uma comissária de bordo tentava desligar o piloto automático e pilotar o 737. A máscara da tripulação de cabine é portátil. Alimentada por pequena garrafa de oxigênio levada a tira-colo. Há oxigênio para alguns minutos. Enquanto o oxigênio durou, fez o que pode. Não conseguiu. Depois... 

O Boeing escoltado pelos Falcons continuou a voar por mais quarenta e três minutos. No piloto automático, o destino continuava a ser Atenas. À bordo, asfixiadas pela despressurização e congelados pela queda de temperatura, 36 graus negativos, 221 pessoas estavam mortas. 

Em Atenas, às 11 horas, Helena colocou a assadeira com as costelas de carneiro no forno. O avião de Nikos aterrisaria no aeroporto internacional em Venizelos, por volta das 11h30. O almoço seria o mais tardar à uma da tarde. 

Enquanto o carneiro assava Lena arrumou a mesa. Nikos estava em Chipre fazia um mês. Em frente aos pratos pôs o copo para a água, para o vinho. Uma garrafa de Karipidis Sansgiovese. 

Um tinto, seco, forte, encorpado. Vermelho borgonha com retrogosto de fruta madura e cheiro de figo seco e de madeira. 
Vinho de Vounena, da Thessalia. Vounena em grego quer dizer pequenas montanhas. As uvas do Karipidis são cultivadas nessas colinas baixas. As vinhas sobem e descem pelo terreno.

Sobre a mesa havia azeitonas verdes e pretas. No fogão, a água do arroz com açafrão fervia. O cheiro do assado impregnava o ar.

Ao meio dia e três minutos, depois de sobrevoar a Ilha de Kea no Mar Egeu e consumir todo combustível, o 737 mergulhou em direção aos montes escarpados, íngremes, secos, cobertos por árvores esparsas, perto de Grammatikos, na região de Varnava, próxima à histórica cidade de Marathon, cerca de 50 quilômetros ao norte da capital grega. 

O almoço estava pronto. Nikos deveria chegar a qualquer momento. Helena ligou a televisão. No canal Osmogenia, a terrível notícia da queda do avião. Helena sentiu as pernas bambas. Tremeu. Sentou em uma poltrona para não cair. 

Na televisão o comentarista falava do desastre. Dizia que segundo as informações recebidas não havia sobreviventes. Unidades do corpo de bombeiros estavam se deslocando para a região de Vanarva.

Lena olhava as imagens sem ver. Ouvia sem ouvir. Sobre a mesa os dois pratos. Nunca mais almoçaria com Nikos

As rádios e televisões que noticiaram a tragédia do Boeing da Helios informavam que um telespectador havia recebido de um primo a bordo do 737, uma mensagem escrita via celular. Dizia: “Estamos gelados. O piloto está azul. Vamos morrer!”. 

Essa mensagem dramática e trágica foi divulgada mundo afora por todos meios de comunicação. A imagem do piloto azul foi associada à dos destroços fumegantes do Boeing espalhados pelas íngremes montanhas. 

Hoje é sabido que a mensagem nunca existiu. Era mentira. Foi uma brincadeira. Uma pegadinha. Um trote. De um sádico e exibicionista. Maldade pura.

São Paulo 22 de agosto de 2005 8h30’ Carlos von Schmidt