Paraíso perdido

Abu afastou o mosquiteiro. Saiu da cama. Raios de sol entravam pela janela. Preparou-se para o Sallat. O ritual islâmico de oração. Concentrou-se. Pegou o tapete e colocou em direção à Qibla, em Meca.
Ajoelhou-se, curvou-se, tocou o azulejo do chão com a testa e com as mãos. Invocou Alá. Allaahu Akbar. Alá é grande. Repetiu quatro vezes. Pediu proteção. Ofereceu sua vida a Alá.
Levantou. Pegou o plástico com os explosivos. Prendeu-o ao peito, à cintura com fita adesiva. Cinco quilos de peróxido de acetona. Estava em jejum. A boca seca.
Abriu a porta. Saiu. Estacionada em frente, a Mitsubishi Pajero branca esperava. Hussein estava ao volante. No banco de trás, Mohammed. Cada um com seu colete de explosivos sob a jaqueta. Abu se sentou ao lado de Hussein. Aos pés de Mohammed, quilos de explosivos. Depois do bom dia, os três permaneceram em silêncio, calados, perdidos em si mesmos.
A Pajero seguiu em direção a Kikambala. Quarenta quilômetros ao norte de Mombasa.
Por volta das oito horas chegaram à praia Diani. O movimento em frente ao Hotel Paradise, de um empresário israelense, era grande. Ônibus traziam turistas do aeroporto, a maioria de Israel. Havia também alemães e ingleses.
Muitos atraídos pelo turismo sexual praticado por menores de idade de ambos os sexos. A preço de banana.
Para os moradores de Kikambala que trabalhavam no Hotel, as meninas e meninos que faziam jiga-jiga, sexo, com os turistas eram de Mombasa. Recebiam os fregueses em uma casa velha próxima ao Paradise.
Hussein continuou pela estrada de terra. Ao passar pelo Paradise, Hussein observou o guarda e a cancela. Tinha na cabeça um gorro branco. Usava camisa verde com o nome Paradise no peito.
No lobby, dançarinos, músicos e cantores kenianos do grupo Mabumbubumbu cantavam e dançavam. Estavam à espera de turistas israelenses. Faziam parte das boas-vindas
Na cancela, o guarda olhou a Pajero sumir ao longe. Dois ônibus do aeroporto chegaram com turistas de Israel. Passaram direto pela cancela.
Olhou para a estrada e viu a Pajero voltando de ré. Vinha a toda. No volante um rapaz com jeito de árabe com camisa vermelha. Bateu na cancela, forçou a passagem e avançou. Gritando pare, pare, o guarda viu a Pajero passar. Só parou na porta do Paradise.
Abu desceu e correu para o Lobby. Cheio de turistas. Entrou. Eram oito e trinta. Explodiu. Em seguida foi à vez da Pajero. Após a explosão a fachada do Paradise desapareceu. Em seu lugar ficou um monte de escombros fumegantes.
Restos da Pajero, o radiador arrebentado e queimado, pedaços de um eixo e da carroceria misturavam-se a pedaços dos corpos de Hussein e de Mohammed.
No lobby, três israelenses estavam mortos. Dois adolescentes, de doze e quatorze anos, irmãos. Um senhor de sessenta e um. Os três olhavam a apresentação do Mabumbubumbu. Dez kenianos, gente do hotel, cinco do grupo de dança, também estavam mortos.
Feridos, queimados, cerca de oitenta, gritavam por socorro. Por água. O Paraíso virou inferno.
O teto de sapé queimou rápido. Da praia, de pontos distantes do mar, podia-se ver as labaredas subindo ao céu. A fumaça negra.
Pouco antes da primeira explosão um pequeno monoplano sobrevoou o Paradise. De onde veio ninguém sabe. Não tinha nada que o identificasse. Do avião foram lançados pacotes de explosivos. Um explodiu no jardim. Outro na piscina. Bombas incendiárias. O que explica a rapidez com que o fogo se espalhou pelo telhado e pelos apartamentos.
Enquanto o Paradise queimava, a 25 quilômetros, no Moi International Airport de Mombasa, um Boeing 757-300 da israelense Arkia Airlines, com duzentos e sessenta e um passageiros e dez tripulantes, preparava-se para decolar na pista A-2. A mais comprida. A maioria dos passageiros havia deixado o Paradise por volta das seis da manhã, depois de uma semana de praia.
A quinhentos metros da pista, entre arbustos, em frente a uma Pajero branca, dois homens observavam a decolagem. Um deles apontava um lança-míssil para o avião. Quando o Boeing atingiu cento e cinqüenta metros de altura, disparou.
O míssil era um Estrela 2, Sam 7, russo. Míssil terra-ar, portátil. O alcance doSam 7 é 3.200 metros. A altitude máxima, 2.000 metros.

A carga explosiva da ogiva é grande. Disparado, o Sam 7 avança em direção à cauda do avião atraído pelo calor desprendido.
Dois mísseis foram disparados. Nenhum atingiu o Boeing. Coisa rara.
A Pajero, o lança-míssil, dois porta-míssil vazios foram encontrados pela polícia no dia seguinte. A dois quilômetros do aeroporto, em Changamwe em Mombasa.
Depois dos atentados, a hipótese da CIA, do FBI, do Mossad, de que em Mombasa, a segunda cidade do Kenia, a Al Qaida mantinha o maior reduto subversivo, terrorista do leste da África, deixou de ser hipótese.
No dia seguinte aos atentados, sexta-feira, 29 de novembro de 2002, no Moi Airport, cinco aviões da Força Aérea de Israel, retiraram duzentos e trinta e cinco israelitas de Mombasa. Dezoito feridos. Três mortos.
Observando e protegendo o embarque, comandos do Exercito de Israel, metralhadoras e granadas à mão, mantinham-se em guarda.
Dias após a Al Qaida e a Al Ittihad al Islam, através da rede Al Jaseera de televisão, assumiram os atentados.
Três anos depois o Paradise Hotel continua em ruínas. Na cancela, o guarda é o mesmo que viu a Pajero avançar e explodir. Usa o mesmo gorro branco. A mesma camisa verde.
Da praia sopra o kakazi, brisa suave. O sol está forte. Faz calor. 32 graus.
De um cargueiro bananeiro atracado nas docas de Kilindimi em Mombasa, vindo da Somália, do porto de Merca, a 90 quilômetros ao sul de Mogadishu, quatro rapazes cujas idades não ultrapassam 25 anos desembarcam. São homens da Al Qaida. Dispostos a matar. A Morrer.
São Paulo, 16 de novembro de 2005 Carlos von Schmidt 15h15’.