Piano Man

”Piano Man, o desconhecido”



Há quem diga que a história começou no amanhecer daquela quinta-feira, 7 de abril de 2005, em uma estrada à beira mar, varrida pelos ventos em Sheerness, na Ilha de Sheppey, em Kent, no sudeste da Inglaterra.

Na verdade Sheerness entrou nesta história por acaso. Por estar perto de Ashford, primeira parada do Eurostar antes de chegar a Londres. 

Ao embarcar na Gare du Nord com destino à Inglaterra, deixar Paris para trás, esquecer a cidade, apagá-la da memória, era para ele imprescindível. 
O amor que tinha pela França, pela língua, pela história e cultura francesa, ao ser despedido, desapareceu. Sentiu-se humilhado, ofendido, derrotado. Sem saber o que fazer da vida.

Deixou Paris com a roupa do corpo, alguns euros e o passaporte. No snack bar do trem tomou um expresso. O café veio acompanhado com bolachinhas com amêndoas. Estava com fome. Devorou-as. Comeu-as com prazer.

Quando o trem entrou no túnel, a idéia de acabar com aquela situação humilhante lhe veio à cabeça. Lembrou-se de um filme em que Virginia Wolf entrava em um rio e se afogava. A solução era essa. Não havia outra. 
A travessia do túnel durou quinze minutos. Pelo alto-falante o aviso de que tinham acabado de fazê-lo foi feito em francês e inglês. Uma hora depois o Eurostar parou em Ashford. Desembarcou. 

De Ashford seguiu para Sheerness. Antes de entrar no mar com a intenção de se matar, rasgou o passaporte, arrancou as etiquetas das roupas, retirou a marca do fabricante do sapato. Jogou tudo no mar. Depois entrou
O sol ainda não tinha aparecido. Ventava muito. A água estava fria. Sentiu na boca o gosto do sal. Avançou um pouco mais. As ondas cobriram-lhe a cabeça. Sentiu a água entrar nos ouvidos, no nariz. Fechou a boca. 

Uma onda o cobriu completamente. Projetou-se para cima. Apavorado nadou em direção à praia. 

Sentado na areia ficou olhando o mar. Amanheceu. Sentia frio. Na boca o gosto do sal. No corpo a água escorrendo, encharcando a roupa. Levantou-se e começou a andar. Ventava. Sentia frio. Tremia. 

Alto, mais de um metro e oitenta, magro, loiro, cabelos cortados rentes nas laterais e mais compridos, espetados no alto da cabeça, na altura da testa, devia ter vinte e poucos anos, não mais.

Vestia paletó, calça e sapato pretos, camisa branca e gravata preta. Molhado da cabeça aos pés, gotejando, água escorrendo pelo cabelo, pelo rosto, era uma figura estranha perambulando pelo acostamento. 

No momento em que os policiais o viram, andava sem destino, olhando para o chão. Aproximaram-se. Acharam estranho àquela hora da manhã alguém estar caminhando pelo acostamento. Naquela ventania. Todo molhado. 

Cumprimentaram o rapaz e pediram documentos. Ele não respondeu. Olhava para o chão, distante, ausente. Perturbado. Desligado. Angustiado.

Insistiram. Não houve resposta. Perceberam que havia algo errado. Levaram o moço para o pronto socorro do Medway Maritime Hospital em Gillingham.

Completamente alheio a tudo e a todos, ele deixou que o secassem. Absorto em si mesmo, olhando fixamente para as pessoas sem vê-las, o olhar parado, vazio, triste, muito triste. Não abriu a boca, nem deu sinal de tomar conhecimento do que se passava.

Sem nenhum documento que o identificasse nem etiquetas nas roupas ou marca do fabricante no sapato que o ligasse a algum lugar, o rapaz era uma incógnita total.

Seu obstinado silêncio, seu profundo isolamento acrescentavam à falta absoluta de dados maior mistério. Amedrontado, apavorado, ansioso, permaneceu isolado, ausente. Assustado. Toda vez que alguém se aproximava, entrava em pânico. 

Quem era? De onde viera? O que queria? Traumatizado? Amnésico? 

Sem conseguir quebrar a barreira de silêncio e alheamento, os médicos do pronto socorro decidiram enviá-lo ao Little Brook Hospital em Dartford, especializado em distúrbios mentais..

”O desenho do piano que lhe deu o apelido”


No Little Brook, depois de várias tentativas frustradas de estabelecer contato verbal, alguém deu a ele lápis e papel. Esperava que escrevesse o nome ou alguma coisa que desse alguma indicação. 

Ao voltar meia hora depois encontrou no papel o desenho de um piano de cauda. Um piano grande. Muito bem desenhado. O desenho deu aos médicos a primeira informação. Deu também ao jovem um apelido, Piano Man.

Na capela do hospital havia um piano. Levado à capela o paciente X sentou-se ao piano e tocou trechos do Lago do Cisne de Tchaikovski. 

Ao terminar, dedilhou Lucy in the Sky with Diamonds, dos Beatles. 

Durante quatro horas fez um pouporrit musical eclético. Só parou de tocar quando os médicos impediram que continuasse, afastando-o do piano.

Depois desse dia o piano passou a fazer parte de sua rotina no hospital. O piano era sua válvula de escape. Ao tocar se transfigurava. Não era mais o animal acuado, apavorado, enrolado na posição fetal no canto do quarto ou sobre a cama sob os lençóis. 

Entregava-se à música. Deixava a música levá-lo. Era outro. Descontraído, calmo, tranqüilo. Longe do piano, observado pelos médicos, continuava mudo, mergulhado em si mesmo. Distante.

O mês de abril passou. Em maio fotos do Piano Man foram publicadas no site do National Persons Helpline, NMPH, entidade que cuida de localizar pessoas desaparecidas.

A partir da publicação informações começaram a chegar. De Roma, um polonês, mímico de rua, informou à polícia que o Piano Man era o francês Steven Villa Masson, um músico de rua.

O jornal inglês The Independent não acreditou na informação. Saiu à procura de Masson. Encontrou-o em sua casa, no sul da França, em Nice. 

Além dessa informação frustrante houve várias outras. Da Checoslováquia o baterista da famosa banda de rock, Prazský Výbèr, Seleção de Praga, Klaudius Kryspin ligou para a NMPH para informar que o Piano Man era o pianista Tomás Strnad. Tocaram juntos na banda Ropotamo nos anos oitenta. Não se viam desde então, mas não tinha dúvida. Era Tomás. 

O irmão gêmeo de Klaudius, Richard, que vive nos Estados Unidos em Columbus, Ohio também ligou para dizer que o Piano Man era Strnad.

A possibilidade de que o Piano Man era o pianista checo foi por água abaixo quando Tomás Strnad foi encontrado em Praga e entrevistado pela televisão. Maio chegou ao fim. Voltou-se à estaca zero. 

Junho começou com a NBC americana dando cobertura total à história do Piano Man. A imagem do jovem loiro, com jeito de criança perdida, amedrontada, comoveu o país. Afinal, quem era o Piano Man? 

Dia 24, a resposta veio da Dinamarca. 
A radical de direita Susanne Schlippe Steffensen, membro do Conselho Municipal de Karlebo, cidade próxima de Copenhagen, em entrevista à televisão dinamarquesa TV2/Lory, declarou que o Piano Man era seu marido, nascido na Argélia. Não se viam desde fevereiro quando viajou para Argélia para visitar a mãe doente. 

Apontando para a foto publicada em um jornal comentou: “Está vinte quilos mais magro e pintou o cabelo, mas posso ver nos olhos que é ele. Eu nunca me enganarei ao ver esses olhos”. 

Seu marido teria viajado para Inglaterra a fim de fugir da família revoltada com seu casamento. Ter casado com um a dinamarquesa era imperdoável. 
“Acho que fugiu para salvar a vida. Foi ameaçado de morte”. 

Dias depois, Susanne bateu na porta do Little Brook à procura do marido desaparecido. A imprensa e a televisão estavam a postos para documentar o encontro. A direção do Hospital não a deixou ir além da recepção. Não permitiu que chegasse perto do Piano Man. 

A história do marido algeriano não convenceu ninguém. Perdeu a viagem. Voltou para sua cidadezinha de mão abanando. 

Junho foi o mês da Dinamarca. Julho da Noruega.

Dia 2 a BBC News noticiou que o Piano Man apontara para Oslo quando lhe mostraram um mapa. Piano Man seria norueguês? Para reforçar a possibilidade a presença de um navio norueguês ancorado no porto, no dia em que o encontraram, aumentava a chance. 

Ao ouvir uma pessoa perguntar seu nome em norueguês, animou-se um pouco. Depois voltou ao seu alheamento costumeiro. Ao mutismo de sempre. 

Nesse ínterim, para complicar ainda mais as coisas o paciente mais comentado mundo afora desenhou uma bandeira da Suécia. Cogitou-se de que devia ter vivido em dos países escandinavos.

Em Oslo, entre 4 e 6 de julho, estudantes associaram Piano Man como um estudante irlandês que fazia intercâmbio. Não tinham a menor dúvida. Era ele. Só podia ser ele. Descobriu-se depois que o irlandês estava são e salvo cursando suas aulas na capital da Noruega. 

Até fins de julho a NMPL recebeu mais de setecentos comunicados sobre o Piano Man. Telefonemas, cartas, e-mails. Mas a sua identidade continuava um mistério. Insolúvel. 

”O Piano Man antes de falar”



Fisicamente estava bem. Mentalmente continuava alheio, mergulhado em si mesmo. Sempre que alguém se aproximava a menos de um metro entrava em pânico. Sua ansiedade aumentava. Agia como um pequeno animal acuado.

Do piano à bandeira se passaram quatro meses. Cento e vinte dias sem uma palavra. Sem um gesto significativo. Nada!

A primavera passou, o verão estava passando. Dia 8 de agosto The Independentnoticiou, baseado em informações confidenciais, que o conselho médico estava céptico com relação ao descobrimento da identidade do Piano Man e sua origem.
Os diagnósticos tinham evoluído de trauma provocado por stress para autismo. Observava também que o paciente demonstrava sinais de melhor contato com algumas pessoas que cuidavam dele

Entre essas pessoas havia uma enfermeira que todo o dia lhe perguntava: “are you going to speak to us today?” , “você vai falar conosco hoje?”.

O silêncio era a resposta. Até que sexta feira, 12 de agosto a enfermeira ouviu uma resposta: “Yes, I think I will”, “sim, eu acho que vou”. 

Sem acreditar no que ouvia deu o alarme. O Piano Man estava falando. O assistente social que o observava desde a internação correu para seu lado. Logo depois chegaram médicos. A cada pergunta, uma resposta.

Era alemão. Seu nome era Andreas. Estava com 20 anos. O pai tinha uma fazendola na Bavaria na Alemanha, em Prosdorf, perto da fronteira com a Checoslováquia. Produzia queijo, leite e manteiga. Tinha duas irmãs. Viera de Paris, de trem. 

Uma semana depois de voltar a falar, Andreas encontrou o pai no aeroporto de Munich.

Mir gehts gut”. “Eu estou bem”, disse-lhe assim que o viu. Abraçaram-se. 
Herr Grassl sabia que Andreas não estava bem. Voltaram para Prosdorf.

Olhando as vacas no curral Andreas disse ao pai: “É bom estar de volta. Não sei o que aconteceu comigo. Não sei como fui parar na Inglaterra. Não me lembro de nada”.

Pegou o acordeão e começou a tocar. 


São Paulo 21 de setembro de 2005 02H00’ Carlos von Schmidt 

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