Picasso e a África

Picasso e a África
Da África do Sul, de Johannesburg, chegam notícias de que a Johannesburg’s Standard Bank Gallery está apresentando mostra que reúne 84 pinturas, desenhos e esculturas assinadas por Picasso.
Essas obras do mestre andaluz estão expostas ao lado de 29 esculturas africanas semelhantes às que teriam inspirado Picasso no início do século passado. Por volta de 1904, 1906.
A intenção da curadoria assinada por Marilyn Martin, do Izico Museum de Cape Town e por Laurence Madeline do Museu Picasso de Paris, é demonstrar que o Cubismo de Picasso e Braque tem suas origens na África.
As obras reunidas foram criadas por Picasso entre 1906 a 1972. Três, L’arbre, A Árvore, Trois figures sous un arbre, Três figuras sob uma árvores e Les Demoiselles d’Avignon, Senhoritas de Avignon, todas pintadas no verão, outono e inverno de 1907, não deixam dúvidas quanto à influência das máscaras africanas, das esculturas africanas.
Picasso sempre negou essa influência. Em abril de 1920 em entrevista que deu a revista Action , quando lhe perguntaram sobre a arte negra, respondeu:”Arte Negra? Nunca ouvi falar!”.

Claro que ouviu. Não só ouviu falar como teve seu primeiro contato com ela na casa de Gertude Stein.
Matisse ao se dirigir à casa de Stein comprou em um bric-à-brac da Rue de Rennes, uma pequena escultura africana. Uma cabeça. Do Congo. Quando Picasso chegou à casa de Stein, mostrou-a para ele. Picasso olhou-a, pegou-a e segurou-a enquanto durou a visita. Só a largou na hora de ir embora.
De volta ao Bateau-Lavoir desenhá-la foi imperioso. Desenhou-a sem parar. Era o Cubismo nascendo. Gertrude Stein, em Autobiografia de Alice B. Toklas conta que “Matisse revelou a escultura negra a Picasso. Naquela época a escultura negra já era bem conhecida dos caçadores de curiosidade, mas não dos artistas.
Tenho certeza que não sei quem foi que admitiu pela primeira vez o valor potencial que ela teria para o artista moderno. Talvez fosse Maillol, que era da região de Perpignan e conhecia Matisse do sul e chamou-lhe a atenção para ela.
Segundo a tradição, foi Derain. É bem possível também que fosse o próprio Matisse, porque durante anos a fio houve um negociante de curiosidades na Rue de Rennes que sempre tinha uma porção de coisas desse gênero na vitrine e Matisse muitas vezes subia a Rue de Rennes para ir dar aulas de desenho.

Em todo caso, o primeiro a ficar influenciado pelas estatuetas africanas foi Matisse, não tanto na pintura como na escultura, e foi também ele que chamou a atenção de Picasso para elas, pouco depois de Picasso terminar de pintar o retrato de Gertrude Stein”. Picasso deu o retrato como terminado em agosto de 1906.
Desde 1904 as máscaras e esculturas africanas decoravam os ateliês de Braque, Derain, Vlaminck e Matisse. Além disso, na visita que fez ao Musée d’Etnographie no Palais Trocadéro de Paris, incentivado por Derain, Picasso viu as máscaras africanas.

Em “Na Cama com Picasso”, no capítulo, Demoiselles d’Avignon, sexo e exorcismo conto como foi a visita de Picasso ao Museu e sua reação.
“Na sala do velho museu, Picasso está só. Nas paredes, nas vitrines, bonecas feitas pelos índios peles-vermelhas, manequins empoeirados, máscaras africanas.. O cheiro de mofo, a poeira sobre os objetos, o ranço das coisas velhas, tudo o impele a ir embora. Detesta o lugar. O museu é como um túmulo. A vontade de sair é imensa. Mas fica.
Ao mesmo tempo em que tem vontade de sair, sente-se fascinado, preso às máscaras africanas. Não consegue tirar os olhos delas. O cheiro do mofo perturba-o. Conhece-o dos bordéis de Barcelona. Regride ao Barrio Chino. Imagens de putas ocupam sua mente. Projeta-as sobre o vidro da vitrine. O rosto de Rosita del Oro sobrepõe-se à máscara africana. As duas imagens fundem-se.
Na sala empoeirada e embolorada do Trocadéro, a idéia de pintar uma cena de bordel nasceu. Para Picasso, o significado estético das máscaras contava pouco. Só lhe interessava o que representavam de mágico, de sagrado. Eram objetos mágicos que afastavam os maus espíritos. Armas poderosas contra coisas ruins.
Hipersupersticioso, Picasso, em conversa com André Malraux, confessou que Les Demoiselles d’Avignon foi, sem sombra de dúvida, “sua primeira pintura-exorcismo”. “Foi naquele dia que a idéia de Les demoiselles d’Avignon surgiu. Mas não motivada pelas formas”.
“Quando fui pela primeira vez ao Museu do Trocadéro, a pedido de Derain, senti-me sufocar pelo cheiro de bolor e abandono que se desprendia do ambiente. Estava tão deprimido que não me importaria de partir imediatamente. Mas, forcei-me a ficar, a examinar as máscaras e todos os objetos que os homens tinham desenhado com uma finalidade sagrada, mágica, para que servissem de intermediários entre eles e as forças desconhecidas, hostis, que os rodeavam, esforçando-se assim por subjugar o medo, dando-lhe cor e forma”.
Compreendi então que era esse o sentido próprio da pintura. Não é um processo estético, é uma forma de magia que se interpõe entre o universo hostil e nós, uma maneira de tomar conta do poder, impondo uma forma aos nossos terrores e aos nossos desejos. No dia em que compreendi isso, soube que tinha encontrado o meu caminho”.

Ao apropiar-se das máscaras, incorporando-as a Les demoiselles d’Avignon, Picasso acreditava piamente que, por meio delas, afastaria tudo que pudesse prejudica-lo. Ao pintá-las, exorcizaria todo mal.
Para Picasso as máscaras não eram esculturas como as outras. Eram objetos de poder. Objetos mágicos. Objetos sagrados.
Acostumado a apropriar-se de imagem de outros, antropófago contumaz, devorou as máscaras. Deglutiu-as. As comeu e descomeu. Incorporou-as à sua obra. Pena que não tenha admitido isso publicamente.
Não fossem Stein e Malraux a história que Picasso contava que para criar o Cubismo inspirou-se nas caixas triangulares de queijo brie, continuaria a vigorar.
Depois do testemunho de ambos a negativa de Picasso não resiste a menor análise. Parece capricho de menino teimoso. Birrento. Nada mais. Coisa de gênio emburrado. .
São Paulo 16 de fevereiro de 2006 5h15’ Carlos von Schmidt