Travessia de verão

Capa do livro Summer Crossing
 


Segunda-feira, 27, fui à cidade. Passei em uma livraria da Barão de Itapetininga e comprei Capote Uma biografia ,de Gerald Clarke, publicada pela Globo, Os Cães Ladram Pessoas Públicas e Lugares Privados, pela L&PM Pocket e Travessia de verão, pela Alfaguara.

Nesse mesmo dia verifiquei que muitas das histórias contadas por outros biógrafos nem sempre batem com o que diz Clarke, o biógrafo mor. Clarke durante oito anos manteve Capote ao seu alcance. De todos os biógrafos foi o que mais conviveu com o escritor. As conversas que tiveram estão gravadas. Centenas de horas. 

Depois da demorada e exaustiva pesquisa sobre Capote, longo texto Capote em Leilão publicado na seção em foco em 15 de novembro, não consegui esquecer de meu personagem , nem de tudo que li, pesquisei. As fontes foram muitas. As informações as mais desencontradas. 

Teria sido muito mais fácil tomar como ponto de partida a biografia de Clarke. Não tomei. Por quê? Quis ver o que outros biógrafos, outros escritores e historiadores pensavam sobre o Capote escritor, o homem. As visões, os relatos e as descrições múltiplas variam muito e divergem mais ainda.

Capote morreu em 1984 antes de Clarke publicar a biografia em 1988 nos Estados Unidos. Aqui só chegou este ano. Referindo-se à biografia em produção e a Clarke, em Conversas com Capote, de Lawrence Grobel, disse: “.... O livro dele deve ser fantástico, porque está trabalhando nisso há oito anos. Nunca ouvi falar de uma pesquisa assim, e esse é o primeiro livro que ele escreve. Não quero lê-lo, mas certamente esse cara sabe mais sobre mim do que qualquer outra pessoa, inclusive eu mesmo”.

E Clarke sabia. Não se limitou a observar Capote, a entrevistá-lo. O depoimento de amigos, dos amantes, amigas, parentes, desafetos, rivais, editores, críticos, historiadores, fazem da biografia, documento confiável. Crível. É a bíblia capoteana. Mas, não é infalível.

Por exemplo, Capote, em os Cães Ladram diz :“fiquei dois anos na The New Yorker e durante o período consegui publicar diversos contos em revistas literárias menores.
( Muitos foram mostrados a meus patrões, nenhum foi aceito, embora uma história tenha voltado com o seguinte comentário:” Muito bom. Mas romântico, em estilo incompatível com esta revista”.)
Além disso, escrevi Summer Crossing . Na verdade, foi para terminar o livro que tomei coragem, abandonei o emprego, saí de New York e fui morar com parentes, uma família de fazendeiros de algodão que residia nos confins do Alabama
... “

Aqui começa a contradição. Aqui começa a confusão. Criada pelo próprio Capote. Não pode ter começado a trabalhar na New Yorker em 1941, quando tinha dezessete anos. Não morava em New York. Estava em Greenwich, Connecticut, com a mãe e o padrasto. Começou a trabalhar na revista em 1941 e deixou-a em 43? Ou, segundo Clarke, começou na The New Yorker no final de 42 ou início de 43 e deixou-a em 44? Demitiu-se o foi demitido? O que o poeta Robert Frost teve a ver com isso? 

No outono de 1943, Capote pediu demissão. Semanas depois foi readmitido. No verão de 1944, em agosto, foi demitido. Não tinha 18 anos. Em setembro faria 20.

Segundo o próprio Capote, em Auto-retrato, de 1972, em Os Cães Ladram, em auto entrevista que encerra o livro, responde à pergunta: “Se o Reader’s Digest encomendasse um perfil para Meu tipo inesquecível, sobre quem escreveria?
Capote: “Que Deus não permita que uma tarefa tão degradante me seja imposta. Mas, se fosse, vamos ver... Robert Frost, o poeta laureado dos Estados Unido, é digno de lembrança. 
Um velho sacana, dos piores. Eu o conheci quando tinha dezoito anos.Pelo jeito ele não me considerou um adorador suficientemente humilde no altar do seu ego. De todo modo, ao escrever uma carta vil parta Harold Ross, o falecido editor daThe New Yorker, quando eu trabalhava lá, ele conseguiu que eu fosse demitido de meu primeiro e único emprego fixo. Talvez me tenha feito um favor, pois eu logo passei a me dedicar a escrever meu primeiro livro, Other Voices, Other Rooms.
 “ 

Frost não era flor que se cheirasse. Seu ego era monumental. Maior do que a Estátua da Liberdade. Era Deus no céu e ele na terra. Em agosto de 44 em um congresso de escritores, The Bread Loaf Writers, em Vermont , interrompeu a leitura de seus poemas quando Truman, que estava na primeira fila , gripado, sentindo-se mal levantou-se e saiu da sala.

Truman Capote
 

Tomou o gesto como ofensa do rapaz e da The New Yorker. Sem saber que Capote era um mero office-boy da revista, confundiu-o com escritor. Irado, disse: “Se é isso que o representante da The New Yorker pensa da minha leitura, eu encerro por aqui.” 
Fechou o livro e jogou-o longe. 

Depois escreveu uma carta para a direção da revista. Acabou com Capote. A demissão veio a galope, sem mais delonga. Ross pediu satisfações a Capote. Este, se negou a dá-las. Disse-lhe que foi à leitura de Frost como Truman Capote e não como representante da The New Yorker. Não tinha por que se explicar. Nem se desculpar. Foi despedido. 

Repete-se ad nauseam que Capote foi revisor, redator da The New Yorker. Não foi. Capote deixa isso claro em Os Cães Ladram, em Uma voz saída das nuvens, texto de 1969 em que diz: “O emprego não era grande coisa pois eu basicamente organizava o arquivo das charges e recortava notícias dos jornais”. 

Fazia parte de suas funções, uma vez por semana, ter as charges à mão para que o editor Harold Ross as selecionasse, junto com o pessoal do departamento de arte e da redação.
Ao contrário dos office-boys que o precederam e que executavam a tarefa de expor as charges no cavalete mecanicamente, Truman não conseguia conter-se. 

Fazia comentários à medida que expunha os desenhos. Elogiava ou desprezava. Ria, fazia cara feia. Até que um dia Ross mandou-lhe um recado pelo diretor de arte para calar a boca. Estava indo longe demais. Calou. 

Era, segundo Clarke, um office-boy interno. Meio período. Um Mensageiro. Não passava disso. Nunca foi revisor. A New Yorker jamais entregaria um artigos de Edmund Wilson, exigente e respeitado crítico literário, para ser revisado por um ilustre desconhecido de dezenove anos, sulista , efeminado e afetado. 

Na abertura de Travessia de Verão, no texto intitulado Truman Capote, essa história de revisor está lá com todas letras: ”No início dos anos 1940, o jovem Capote conseguiu um emprego de revisor na revista The New Yorker, mas foi demitido por ofender o poeta Robert Frost”. 

A redação final da frase dá a impressão de que Capote foi admitido e demitido. Não foi bem assim. Os japoneses bombardearam Pearl Harbo em 7 de dezembro de 1941. Os Capote, que viviam em Greenwich, voltaram para Manhattan em junho de 42.

Os Estados Unidos estavam em guerra. A mobilização militar reduziu consideravelmente a mão de obra. Foi graças a essa carência que Truman conseguiu um emprego, no final de 1942, na The New Yorker . No outono de 43, pediu demissão. Saiu para escrever em tempo integral. Não resistiu. 

Semanas depois voltou à The New Yorker. Reassumiu as funções de office-boy. 
Varria a sala, espanava os móveis, arrumava as cadeiras, preparava o cavalete para a apresentação dos desenhos. Sem esquecer de deixar à mão de Ross a agulha de tricô que ele usava como ponteiro parar indicar o que gostava ou não. 
O verão chegou com muito calor. Capote aproveitou os dias livres a que tinha direito para ir ao congresso em Vermont. 

Foi quando o super ego de Robert Frost o atropelou. O poeta passou-lhe por cima como um tanque de guerra. Uma carta de Frost a Ross custou-lhe o emprego.

Foi demitido a pedido do poeta. Capote sempre negou com veemência que tivesse deliberadamente ofendido Frost. Sempre que aprontava, assumia. Nunca assumiu. Em 1944 Capote não estava com a bola toda como cinco anos depois vai estar.

A rigor foi graças a Robert Frost que se tornou o admirável escritor que foi. Ao poeta que se portava como diva temperamental e ao padrasto Garcia Capote que se prontificou mantê-lo enquanto terminava de escrever sua primeira novela,Summer CrossingTravessia de verão.

Capa de Travessia de verão


Uma novela sobre uma jovem, Grady, de dezessete anos, muito bonita, filha de um financista da Fifth Avenue. Durante o verão, os pais deixam a filha sozinha no enorme apartamento de New York e seguem pelo Queen Mary para Paris, via Havre.

Daí o título do livro, traduzido como Travessia de verão. Não acredito que Capote aprovasse a palavra travessia. Ninguém fazia travessia no Queen Mary. No super transatlântico se fazia no mínimo cruzeiro, tour. Travessia se faz na balsa, entre São Sebastião e Ilhabela. 

Para terminá-lo, Capote foi, no começo do inverno, para a fazenda dos parentes no Alabama. Lá ao reencontrar o passado de menino e adolescente, escreverSummer Crossing deixou de ser importante. A respeito da novela Clarke cita Capote dizendo :”Cada vez mais Summer Crossing foi me parecendo frágil, engenhoso mas sem sentido. Uma outra linguagem, uma secreta geografia espiritual, começou a germinar dentro de mim, ocupando todos os meus sonhos e devaneios.”

À medida que o passado o dominou, Summer Crossing foi deixado de lado. Em um dia de muito frio, depois de caminhar por lugares repletos de vívidas lembranças, de andar muito em volta do lago, pelo bosque, à noite Capote voltou, foi para o quarto e jogou o manuscrito de Summer Crossing no fundo de uma gaveta.

Apontei o lápis, peguei uma folha em branco de papel pautado, entrei na cama de roupa e tudo e, com um otimismo patético escrevi: Other Voices, Other Rooms, romance de Truman Capote.”

A história de Grady McNeil, adolescente rica que, no verão de 1945, se apaixona por um jovem judeu, pobre, calado e grosso, empregado de um estacionamento, deu lugar à de um menino, Joel Knox, reflexo de Truman, descobrindo o mundo, o sexo, a homossexualidade, em uma pequena cidade sulina. 

Other Voices, Other Rooms foi publicado em 1948. Bestseller projetou Capote às alturas. Summer Crossing esteve desaparecido dos anos 50 até 2004 quando apareceu na Sotheby’s de New York com outros pertences de Capote. Porém esta é outra história . Digna de uma novela à moda de Capote.

Summer Crossing foi publicado em outubro de 2005, nos Estados Unidos, pelaRandon House. No Brasil, pela Alfaguara, em setembro passado. É um Capote, mas está longe, muito longe do Capote que se revelou em Outras Vozes, Outros Lugares, o Capote que flui em crônicas magníficas em Os Cães Ladram e, é claro, no sempre citado À Sangue Frio, sua obra prima.

É perceptível que se trata de marinheiro de primeira viagem. Se não fosse publicado, não faria falta.

São Paulo sábado, 2 de setembro de 2006 3H37’ Posted by Carlos von Schmidt 

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